Leia um trecho de "Romanceiro de sangue"

Leia um trecho de "Romanceiro de sangue"

ELES NÃO USAM BLACK FRIDAY

(trecho do conto)

 

 

Quando você acorda às 4 horas da manhã, tem um demônio colado no seu ombro, pesando nas suas costas.

Os pensamentos são meio confusos e quase a maioria deles são soprados no ouvido pelo filho da puta do demônio.

Tem uns que chamam de encosto. Eu chamo de demônio mesmo.

D–E–M–Ô–N–I–O

Esta cidade é velha, uma das mais antigas do país, tem mais de quinhentos anos, das primeiras do descobrimento. Espíritos fundadores da nossa nação. Os verdadeiros pais do país.

Eu tenho pra mim que é pra eles que o povo devia estar acendendo vela e fazendo oração, não é pra esse monte de estátua de santo loiro e olhos azuis que desfilam nas imagens das igrejas, nos canais da TV a cabo, nas rezas dos santinhos das promessas mal feitas, mal pagas, mal cumpridas.

Tá bom que Jesus era loirão. Sei.

Cê nunca assistiu aquelas reportagens de quando os Estados Unidos jogam bomba lá nas bandas de onde Jesus viveu? Oriente Médio. Já viu algum loiro lá, fora os repórter da CMM?

Aquele lugar é só o pó, todo acabado.

As crianças, tadinhas, tudo passando fome, comendo miséria, bebendo o sangue da destruição pra todo lado.

Jesus nasceu na periferia da Galiléia – eu sei porque eu fiz Primeira Comunhão – e te digo, a barra lá era pesada por isso ele escolheu nascer num lugar daquele.

Galiléia, boca quente! Nasceu lá pra dar o exemplo.

Só que nóis aqui, a gente também não fica pra trás não. Já imaginou a qualidade dos espíritos que tão por aqui?

Tem índio queimado, índia morta abusada, tem negro escravo de pele arrancada correndo esfolado, jesuíta comido pelos índios, outros torrados pelos próprios colonizadores. Gente morta que perdeu a noção do Tempo.

Imagina os espíritos da época das caravelas, vendo avião passar sobre os cornos, edifícios gigantes, máquinas monstros de barulhos ensurdecedores.

Imagina o psicológico desses espíritos vendo as paradas tecnológicas de hoje passando nas córneas deles, tipo alucinação. Espírito tem córnea e alucinação.

Tem sim – eu sei porque eu fiz Crisma. Não crê? Dá um rolê na cidade.

Para num busão, num metrô, olha pra galera. Você acha que todo mundo que tá lá tá vivo?

E nas baldiações de metrôpratrem tremprametrô? Aquela renca de penca de gente que não acaba mais, poluição de pessoas.

Todo mundo que tá lá tá andando sem pensar pensando, quase todos com pressa, uns na paranoia, outros desligados olhando pro nada, tem de tudo na multidão.

E você acha mesmo que na multidão todo mundo tá vivo?

Tá bom, vai nessa. Por isso que eu não olho tanto pro lado. Às vezes, quando olhei pro lado, já vi uns olhando pra mim. Eles te olham de volta. Cuidado.

Se eles se ligarem que você tá ligada neles, eles olham você de volta e até te seguem, vão atrás de você depois que você descer na sua estação, no seu ponto.

Uma coisa é o demônio que cada um tem, outra coisa são os que estão por aí, esperando um dono, igual cachorro de carrocinha esperando dono lá no lugar onde eles ficam esperando um dono.

O negócio é que espírito espera um dono em qualquer canto. Não tem canto certo.

Bobeou, eles pegam, pulam, encaixam. Eu tenho um no meu ombro.

Não sei o nome dele, nem quero saber.

Não sei a cara dele, nem nunca olhei pra trás quando senti a presença dele.

Nem quero papo.

Não sei como faz pra tirar ele.

Já fui em igreja de papa, igreja de crente, terreiro de macumba. Já fui num centro espírita kardex.

Eles falaram que era o filho que eu abortei, que ficou colado nas minhas costas. Não creio.

Esse é grande, é maior que eu. Mais velho.

Não é natural da natureza dos monstros que um filho seja mais velho que a mãe.

De maneira que eu não sei e não quero saber.

Acordo às quatro da manhã, olhos ardendo, cabeça tonta, corpo dolorido. Tenho a cidade pra atravessar, enquanto me sinto mesmo é ser atravessada por ela. Lenta.

Vou a pé o maior trecho, desço andando pela rua de terra, que é rua de lama quando chove. Quando chove eu levo um saquinho de plástico do supermercado nos pés pra enfiar o pé na lama e jogo fora quando chega no asfalto. Na rua de asfalto eu fico lá esperando o busão. Enquanto ele não chega, ainda é de noite e eu fico olhando pro céu, vendo as estrelas.

O primeiro busão vem direto da garagem, chega todo lambuzado de óleo que eles passam pra limpar o piso onde a gente pisa. Aquela meleca grudando no sapato, o cheiro do diesel revirando o estômago, vontade de vomitar, por pra fora a comida de ontem, o leite e o café de agora há pouco. Que eu não como pão de manhã, só bebo um café, às vezes um Nescaltoddynho, dois dedos e pronto. Só dois dedos pra quebrar o jejum.

Que de jejum, o demônio se aproveita e fala umas inconveniências no meu ouvido.

Coisas que é foda ouvir de manhã quando a cabeça ainda tá tonta, no sono e o corpo tá andando só.

Quando tá frio eu brinco com o vapor do bafo que sai da minha boca. Me sinto a diva no estrangeiro, brincando na neve. Nem sei como é neve. Dizem que é uma planta cinzabranca que cai do céu. Sei lá. Tem tanta coisa que cai do céu. Tem lugar que cai sereno, dá geada de madrugada. Acho bonito. Me sinto mais quente que o mundo, me sinto viva de dentro pra fora.

Daí, comprei um fone de ouvido caro, mas é investimento, filho da puta de demônio não vai cantar parada errada na minha orelha não.

Comprar. Gastar. É fácil.

Ganhar que é foda. Vai trabalhar pra ganhar, pra ver.

São 4 horas de uma “via cruzes”, como diz o papa – eu sei esses nomes porque todo ano eu assisto a missa do galo – e lembro da minha mãe que dizia

“Fodo mesmo que quem morre na véspera é o galo.”

Vouvamos lá, tipo caminhão de carga viva, todo mundo amontoado, de pé, busão, outro busão, trem, metrô, lotação e chego lá na patroa. Às vezes, quando chego ela ainda tá dormindo. Nem falo nada, já chego chegando, mostrando serviço, preparo café, pão, já vejo se tem roupa pra lavar, dou uma geral na casa.

Antes eu julgava ela, nem sei se era inveja – o demônio que falava que não se deve ter vergonha de sentir inveja. Eu não curto sentir inveja, mas quem nunca sentiu que sinta pra saber como é.

Agora, atualmente hoje, eu tenho só dó dela mesmo.

O marido largou ela com um filho bebezinho e foi morar com uma novinha. Esses casos acontecem mais do que as pessoas pensam. Ela até aumentou minha diária, ficou com medo de eu abandonar ela também.

Eu tô é com medo dela fazer alguma coisa com o menino.

Ela encanou que o cara largou ela por causa do nenéim. Não aguentou a responsa.

Eles não aguentam mesmo.

Homem não aguenta uma cólica, imagine se sangrasse todo mês. Cambada de cuzão. Gozam e pronto.

Dizem que o gozo do homem demora trinta segundos.

Vi numa revista Nova velha na recepção do salão da Neide, que trata da minha unha encravada. 30 segundos. Parece pouco mas, nesse tantinho de tempo dá pra morrer e dá pra fazer uma vida.

Minha opinião, que ninguém pediu, é que devia demorar mais, não que façam por merecer, mas era só pra esses putos perderem o tempo deles com a mesma mulher, em vez de sair querendo gozar trinta segundos com a cara de cada uma.

Não sei quem foi o cientista que ficou do lado contando essa parada de gozo. Cientista é tudo vida louca, quando eu acho que meu trampo é puxado eu penso: e o povo que sai de casa e vai pro laboratório pra analisar fezes dos outros? Por isso eu não reclamo.

Até troco as fezes do menino, mas ele é anjinho nem tá ligado nas merdas que faz, ao contrário do calhorda do pai dele que tá ligado na cagada que deu na cabeça da exposa. Agora, agonia é aguentar a criança chorando e aguentar a mãe chorando. Dia desse, até eu chorei.

Sei lá, fiquei com pena deles. Chorei.

Pareço, mas, não sou de ferro. Por falar em parecer, quando eu comecei a trabalhar lá na casa que nunca foi lar, na aparência, eles eram igual aquelas família de comercial, tão igual que até na duração duraram pouco. Pra evitar o choro geral eu uso o fone de ouvido. Investimento. Só tenho que ficar esperta porque às vezes a mulher chora ou chama, a criança chora ou chora e eu tenho que ficar ligada porque eu curto um pancadão, né? Dá um ânimo pra segurar o batente.

Falar uma ConfissãoRepórter, eu queria mesmo era ter nascido mais jeitosa, com um bundão, uns peitão, aí a conversa mudava, eu ia pra um outro nível. Entrava pra esse esquema de funk, fazia umas putarias, cantava umas bosta, balançava o popozão. Só que nasci de sete meses, economia até na gestação. Não desenvolvi nada muito demais além do pouco que recebi por natural.

Mas, eu levo de boa, quer saber? Bato no peito. Eu me garanto quando cai um na minha teia.

Dou trabalho pro cara. Nem deixo ele ir logo gozando nananina–não, seguro até onde der. Vai ficar piscando junto que nem eu. Eu deixo é a minha marca, que é pro cara não esquecer de mim. Garanto que não esquecem.

Um dia o Valdo falou: “Pô, você até que é gostosinha, nem dava um conto por você. Mas você trepa, hein”.

Se liga… “gostosinha”, gostosinha é a senhora sua mãe dele. Valdo veio com uns papos de que mulher murcha cedo, que agora com viagras homem trepa e tem filho até os cem anos. Nota Zero em Xaveco. Esses caras tão tudo fudido, vão é morrer de ataque quando ficarem mais velhos que esses remédios uma hora arromba o coração dos desavisados. Exagera pra ver. Mulher não tem que deixar nada duro não, meu filho, não tem aparência, é pele, é pelo, é melaço. E quando não mela, passa um KY que entra sem doer, e a verga navega.

Olha, pretendo morrer bem velha e seguir trepando até a velhicidade procuro um homem de verdade, ponta firme da cabeça de cima – nem precisa ser roludo – mas, se não encontrar, eu arrumo uma companheirA, que das gretas, grotões e rincões dos profundos de uma mulher, quem entende mesmo é: mulheres.

Eu falo, viu. Eu falo muito é porque gosto do carinho do ventinho que as palavras fazem quando saem pelos meus lábios bocafora.

Essa cosquinha nos beiços que parece um beijo da vida. Eu góstcho. Não é à toa que das vezes que iludilmente me apaixonei na vida, foram as palavras deles as primeiras a me penetrarem.

Graças a Deus eu penso muito e em várias coisas, não é só sexo e amor não. De amoramor não me dou de falar. Que amor que não se guarda em segredo, trancado num cofre com sete voltas bem dadas nas chaves do egoísmo, o talzinho mais cedo ou mais tarde acaba por se prostituir aos olhos gordos dos outros.

E mulher é amiga até a página dois, quando quer o que é da outra, pode ser melhor amiga. Toma. Quer nem saber. Por isso de amor, me calo.

Inda mais hoje, com todo mundo vendo o cu de todo mundo nessas redes. Caiu na rede é peixe.

E peixe morre é pela boca mesmo.

Por isso, prefiro passar atestado de abobada, que eu sou besta mas não sou soró e dar com a língua nos dentes a falar de safadeza. Isso sim é brincadeira boa.

Por isso me apresento quando me querem em uma linha:

Quem é você? Eu? Tu. Eu sou uma gozadora.

Aí dou uma risada alta e honesta, que se parece a uma arara com soluço e todo mundo ri junto, se diverte e eu não ligo. Melhor quando se comunga pelas coisas boas porque a gente nasce só e morre só, então, não basta viver só, é preciso sorrir junto pra fazer sentido, a vida.

 

 

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