Leia um trecho de "A morte do alquimista"
Leia um trecho de "A morte do alquimista"
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“Compramos, por fim, os direitos de O alquimista por 6,5 milhões”. Harry Donaldi (o acento, por favor, em nal), um dos diretores da TriStar, deu a notícia numa das festas em que bati em David Salle, o pintor norte-americano que faz colagens de mulheres peladas. Primeiro, as porradas:
a) eu detestava o sucesso de Salle e com o coração comido pela inveja, ouvi-o dizer que Portinari o aborrecia. Para ser direto, ele disse algo como e o tal Portinari? Quem disse que pintava alguma coisa? Não sei por que me entreguei a excessos ufanistas, mas parti para cima, sem dó. Acertei um olho, o nariz e o estômago. Depois, expulsaram-me da festa. Dois grandalhões filhos da puta, verdadeiros gorilas, que vestiam ternos mais caros que o melhor dos carros que já tive. Acho que estava frio. Sempre que penso naquelas festas, penso no frio. Meus 1,80 metros não assustam leões-de-chácara... Então, apanhei para valer. Mas tudo bem. O que é esta vida senão uma surra?
b) da outra vez, tinha a ver com Marcela. Não recordo do ano, mas era outra festa que o artista, cheio dos cabelos que não tenho, num rabo de cavalo pujante e volumoso, deu em sua casa no Brooklyn. Não sei por que diabos, ou melhor, eu sei (foi pela bunda tremenda de Marcela, a oitava maravilha do mundo), o artista engraçou-se com a minha mulher: perdi o controle como faço quando bebo. Ou quando estou com ciúme. E bati em Salle, outra vez. Não perdi as brigas, garanto. Porque o homem é um merda, como todos os artistas. Mas os grandalhões estavam lá, de novo. Desta vez, com um soco inglês e, pela disposição, mais bem pagos. Lá fora, no frio, não fosse por Janet Malcolm, amiga comum (que temos Salle e eu, quem diria...), os brutamontes teriam me matado. Marcela voltou frustrada para o hotel.
Certo. Agora, devo inverter a ordem dos eventos, porque fiz uma confusão dos diabos. A primeira vez que bati em Salle foi por causa de Marcela. A segunda, pelo Portinari. Ouvi a notícia sobre O alquimista na última das festas, também no Brooklyn.
***
Ganhávamos a vida, Marcela e eu, com um famoso bistrô em Salvador. Eu escrevia livros e alguns artigos e dava aulas na Universidade Federal da Bahia. Arrisquei-me na ficção uma única vez e venci um concurso de contos com um livro magrelo. De repente, lembro da história de Osamu Dazai, escritor japonês de começos do século XX, que sonhava com o grande prêmio Akutagawa; o homem, que terminou matando-se afogado, escreveu duas cartas para Kawabata, o futuro Nobel de 1968, um dos jurados da competição:
a) da primeira vez, fê-lo com raiva, atacando o autor de O lago, porque o criticara num jornal e, claro, não lhe dera o prêmio. No texto, defende seu trabalho com unhas e dentes, dizendo, entre outras coisas, que seu conto ou romance é uma peça importante das “narrativas do eu”, gênero literário de corte pessoal que surgiu no Japão em fins do século XIX. Depois, faz uma confissão tristíssima: a tentativa de suicídio: um dia se amarrou a uma jovem com uma corda vermelha e jogou-se no mar. Apenas a menina morreu. Alguns marinheiros resgataram Dazai. Vale registrar que o japonês, alcóolatra e viciado, tentou matar-se uma porção de vezes, de todo o jeito imaginável. Esta primeira carta é uma história curta de Dazai, um conto sobre si mesmo, que quer despertar, a todo custo, as emoções de Kawabata. Além disso, é um ato de vingança. Leiamos um trecho: depois de meses no hospital, recuperando-se de uma cirurgia no estômago, Dazai, em fins de agosto, vai a uma livraria e encontra as críticas de Kawabata: “Criar passarinhos? Assistir a espetáculos de balé, Senhor Kawabata, isto é a vida? Vou apunhalar você! Este homem é um canalha, pensei”. A carta é um delirium tremens, porque, palavras depois, Dazai está dizendo: “Então, entendi: Você tem por mim um amor torto, quente e apaixonado (...) Mas você não sabe disso.”
b) a segunda carta, bem mais curta, é comovente: “Nesta, eu transcrevo os meus sentimentos”. Arrependido do ataque a Kawabata e, é provável, sabedor de que sem o seu apoio jamais venceria o prêmio Akutagawa, Dazai segue com a frase: “Aprendi na minha carne a grandeza da vida: existem milhões de demônios nesta sociedade, mas também milhões de budas”. Adiante diz que nunca venceu um prêmio na vida e que qualquer valor em dinheiro lhe daria a chance de viajar e descansar, pela primeira vez, o corpo e o espírito. Não sei se por bravura ou desespero, vai direto ao ponto: “Se não for pedir demais, você poderia me dar o prêmio. É o sentimento mais honesto que tenho (...) Ultimamente estou na pobreza, não pude escrever nada que não cartas. Por favor, me dê esperanças. Permita-me fazer feliz uma vez na vida a minha velha mãe e a minha mulher. Me dê a glória. (...) Não me deixe morrer...”
Querem saber? Kawabata não lhe deu o prêmio.
Em 1948, Dazai morreu. Ganhou um prêmio um pouco antes, mas não chegou a saber, acho. O que é triste. Disto não tenho certeza. Não lembro muito bem. Tenho em algum lugar um livro sobre a sua vida.
***
O Brooklyn é caro. Jamais deixaria o Brasil para viver lá. Não posso. Não quero. Porque é o lugar em que vive David Salle. Em Salvador, Marcela, Lucas (meu filho) e eu somos felizes. Vivemos bem e temos algum dinheiro. Ela é uma chef talentosa, como poucos...
E tem o rabo mais lindo que já vi.
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