Leia o primeiro capítulo de "Eulogia aos vivos"
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Abrir a porta
Um suave giro na maçaneta e abro a porta.
Poucas horas atrás, sua voz frágil me dizia ao telefone que precisava de ajuda. Enquanto vinha para cá, imaginei que teria de tocar a campainha, clamar seu nome e bater na madeira envelhecida que nos separava. Então arrombaria a porta. A cena dramática de socorro, o filho herói. Mas bastou mover a maçaneta.
Talvez ela tenha destrancado ao perceber que não estava bem. Talvez estivesse sempre aberta. O mundo inalcançável estava atrás de uma simples porta. Há quase uma década que ninguém entra aqui. Um respeito inexplicável, vergonhoso até, uma indiscutível submissão às vontades de Valéria. Uma situação cômoda para os outros e uma dúvida impertinente. Seria seu desejo? A porta-muralha? Mágoas e sonhos e impossibilidades trancadas consigo neste velho apartamento.
Mãe, avó, católica e devota de Santa Teresa. Ex-interna do Educandário Santa Maria Auxiliadora, de onde saiu para cursar enfermagem padrão no Hospital das Clínicas de São Paulo, deixando o curso para trabalhar como vendedora na Christian Gray Cosmetics, onde conheceu Jorge, caipira pobre, porém esforçado, talentoso, apaixonado, casaram-se na igreja. Vieram as filhas, primeiro Luzia e, pouco depois, Amalia. Eu, oito anos mais tarde. Não só cuidou da prole, mas mamãe foi empresária do meu pai, do sócio dele, artistas plásticos com mais talento que juízo. Ela abandonou o curso de direito para liderar o grupo, para comprar este apartamento, para se dedicar aos outros, generosa, sorridente, não queria nada para si. Alimentava a família, gerenciava o ateliê e trabalhava em escritório – os contracheques de Valéria sustentavam a maioria das contas enquanto o marido perseguia seus sonhos. Ela forneceu os alicerces. O apartamento: uma pechincha, num prédio antigo, carente de reformas, enfim a casa própria dos Almeida. Este lugar onde fica esta maçaneta, esta porta, este piso, esta cozinha, onde chegamos a conviver antes de nossa vida virar um roteiro ruim de telenovela, antes de minha mãe espionar meu pai e o sonho familiar se desintegrar em negligências. Muito antes de eu insistir, como uma criança teimosa, em coçar feridas que já pareciam cicatrizadas. O lugar em que o estado das coisas ficou inalterado, a suspensão de vínculos, uma distante promessa de dias melhores, de redenção, de reunião.
Com sua ligação, sua voz trêmula, ela disse Nito, não estou bem. Como assim, mãe? Estou caída, no chão, difícil respirar, difícil me mexer. Eu quis desligar ali para chamar Luzia, mas ela pediu que não o fizesse. Estou fora da cidade – respondi –, mas a caminho. Precisamos da Lu.
Não havia mais a quem recorrer e eu levaria trinta minutos se o carro de Izadora voasse. Não, sua irmã não, insistiu. Mãe e filha não se falavam havia semanas.
Seria a primeira vez que entraríamos no lugar proibido, o covil interditado que ninguém visitava havia muitos anos. Convenci Luzia. Deve estar chegando.
Cometi alguns crimes de trânsito, mas enfim estou aqui. Abro a porta. Mãe? Lu?, não ouço ninguém. Há um cheiro estranho na cozinha, de um chorume azedo e longínquo. Vejo papéis velhos, de tamanhos variados, grudados com fita na parede, e alguns rasgados e espalhados pelo chão. Vejo sua caligrafia em alguns, outros são documentos e recortes de revistas e jornais. Escuto um miado. Aproxima-se uma gata gorda, de pelo curto e malhado, grandes e curiosos olhos, ela se enrosca em minhas pernas e solta outro fino miado – um pedido de resgate, talvez um choro. Gabi ou Sandy, não lembro, só vi a bichana por foto. Onde está mamãe, gatinha?
Ela parece esperta, bonita e limpa. Uma bolota fofa que destoa do caos ao redor. Eis o grande segredo. Azulejos quebrados nas paredes, móveis antigos e manchados, portas bambas e descascadas nos gabinetes da cozinha. À direita, reconheço o velho fogão, do qual se soltaram alguns botões: há mais panelas sobre ele do que suas quatro bocas comportam. Numa caçarola há sopa, com um agradável aroma de legumes cozidos que contrasta com o fedor que exala de todo o resto. Um cenário horrível, assustador e triste demais.
Dezenas de pratos, talheres e utensílios usados se espalham pelo balcão até a pia. Entupida, tem água até a metade. Entre restos de comida, boia um copo de plástico, em formato e cor de laranja, do qual sai um canudo a simular o caule verde da fruta. Eu o reconheço: é um antigo copo infantil, já há muito fora de moda. Há alguns anos falamos dele, eu pedi emprestado à mamãe, duvidando que ela o houvera guardado. Ali está, bem conservado, à deriva na pia-lago, entre um pedaço de tomate, grãos de arroz e uma gosma disforme.
O copo de criança era meu.
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