Leia um trecho do conto "Redenção"

Leia um trecho do conto "Redenção"

     " (...) Vilaça fez parte da escolta brasileira que acompanhava os baixos oficiais paraguaios destinados à prisão, e se já tinha ouvido falar da famélica condição dos soldados, não se surpreendeu com a situação dos superiores paraguaios prisioneiros. Esgotados, pareciam estátuas feitas de barro com os pescoços curvados para baixo, abatidos pela vergonha. Diferente dos altos oficiais, que em alguns casos foram tratados com sobras de benevolência, esses desgraçados haviam passado noites em claro e estavam queimados do sol, magros, sujos, e com barbas e bigodes hirsutos. O capitão Vilaça refletia que para todo homem na guerra há o limite, e eles, bem como os soldados, haviam chegado a tal, foram empurrados para o desastre. Como os homens não podem escolher, são forçados a lutar e a acreditar que suas vidas são componentes de um projeto redentor de suas pátrias. Não importa o lado que combatam, se lhes incute no íntimo que sua existência somente a partir daquele momento ganha sentido. Ao mesmo tempo em que cada instante pode ser seu último, o seu passado anterior é ignorado e sua honra pessoal é pesada em um prato da balança, em cujo outro extremo pendem a ignomínia e a vergonha.

     Ao chegar no acampamento, Vilaça apercebeu-se que da ala dos oficiais uruguaios vinham gritos e risadas em tom de deboche. Em volta de uma roda e ao lume de uma fogueira, dois homens se engalfinhavam desesperadamente e queriam passar rasteiras um no outro. Os brasileiros se aproximaram, assim como outros soldados, e o cerco ia crescendo. Havia no ar um odor forte de suor, tabaco e aguardente. Como toda vez em que isso ocorria, as explicações para o embate dada pelos que assistiam eram díspares:

     – Jogavam truco, pelo desempate. Quem ganhava levava tudo! Mas o espanhol não se dignou a pagar!

     – O Pacheco é que lhe devia 50 pesos! O tenente Oropeza foi cobrar e ele se ofendeu!

     – Que dizes, homem? Pacheco é que se deitou com a favorita do tenente!

     – Ele questionou Oropeza pela sua fidelidade aos colorados!

     – Ouvi bem quando Pacheco lhe disse que é traidor, que não mostrou consternação pelo massacre de Quinteros, e que em realidade era ele que deveria ter sido morto lá.

     Ocorreu que separaram os homens para depois lhes darem adagas. Os orientais, como alguém já lembrou uma vez, eram muito aguerridos, e sabemos que duelavam até cavalgando, com lanças. Nos duelos de morte, as ofensas pessoais só poderiam ser quitadas de uma única forma, a fim de que fosse defendida a honra.

     Vilaça notou que haviam dado a Oropeza uma arma de cabo comprido, da qual nem prestou-se a avaliar, por estar inebriado pela luta. O capitão brasileiro abriu caminho entre os companheiros orientais do tenente e o chamou, no que este dobrou o pescoço bruscamente, reparando que a voz não lhe falava em castelhano. Vilaça lhe estendeu o seu punhal, de cabo curto e de couro, e com duas hastes de empunhadura.

     – Tome esta, tenente!

     Oropeza teve poucos segundos para largar a adaga e tomar o punhal de Vilaça. O que se deu a partir daí, entre gritos em que se ouvia tudo e nada, pode ser descrito assim: com as armas brancas nas mãos direitas e os ponchos nas esquerdas, Oropeza e Pacheco deram voltas sem tirar os olhos um do outro. Pacheco foi o primeiro a desferir um golpe que era para ter sido uma estocada na costela do tenente, se o seu reflexo não tivesse sido mais forte. Pacheco insistiu, mas Oropeza se desviava, o que provocou mais gritos indignados dos espectadores, que diziam que lhe faltava coragem. O tenente, então. desferiu em Pacheco um golpe no antebraço, o que foi respondido pelo oponente, que num golpe ligeiro rasgou-lhe superficialmente o pescoço, mas o suficiente para fazer pensar à turba que logo se entregaria. Com os olhos aquosos rubros de ódio, Oropeza atirou-se sobre Pacheco, dando-lhe estocadas na axila direita. Pacheco caiu ao chão, e abandonou a luta, amparado pelos seus colegas de batalhão.

     O fato é que o espanhol daí em diante não seria mais chamado de covarde. No meio daquela mesma madrugada, procurou Vilaça para lhe devolver o punhal. O capitão estava fumando, ao lado do sentinela do acampamento, quando viu, na cerração baixa, aquele homem que vinha com o pescoço coberto com gaze e com a farda cobrindo-lhe a roupa de dormir. Oropeza veio já estendendo-lhe a arma pela lâmina.

     – O pícaro ficará bem. Mas aprendeu a não falar mais mentiras.

     Vilaça assentiu em silêncio, balançando a cabeça, pegando o punhal e guardando-o no cinto. Oropeza o mediu com os olhos da cabeça aos pés. 

     – Creio que pensas que não me lembro de ti. Já faz quatorze anos, brasileño.

     – Lembro de Tacuarembó – respondeu Vilaça. – Mas assim como tu, faço que não me lembro.

     O espanhol ficou confuso com a resposta, mas depois riu. Conversaram mais sobre o tempo em que estavam em Corrientes, e o quanto achavam que ainda levaria para empurrar os guaranis de volta para seu país.

     – Isso vai longe – disse Vilaça, olhando para as estrelas.

    – Mas se for para dividir o mesmo lado como homens como vós, terá seu valor! – respondeu Oropeza, com as mãos na cintura, se despedindo: – Terá valor. Gracias, brasileño! – E, a passos afastados, ainda agregou: – E venha jogar uma partida quando quiseres! (...) "

 

 

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