Em 1988, quando eu tinha 22 anos de idade, entrei em uma famosa livraria de São Paulo e me deparei com uma obra com título sugestivo: Os olhos do diabo, do escritor argentino Jorge Andrade – homônimo do dramaturgo brasileiro. Na orelha do livro (lançado pela extinta editora Trajetória Cultural), uma foto em preto e branco de um homem de aparência austera, com um bigode à la Nietzsche, e a informação de que o romance havia ganhado, dois anos antes, o Prêmio Benito Pérez Galdós, na Espanha – onde o autor, então com 52 anos, residia havia 12.
Os olhos do diabo tem um subtítulo, Uma sedução. Pois é isso que opera o seu narrador sem nome: a sedução silenciosa e distante, porém obcecada, de uma bela jovem que ele vê num café todos os dias, e que parece alheia e inatingível. Ele recorre então a uma cartomante, alcoviteira de um bordel que pertence a um enigmático estrangeiro de nome Monsieur Anatole e é administrado por um anão chamado Remígio-não – alusão ao personagem de mesmo nome do romance História de Garabombo, o Invisível, do escritor peruano Manuel Scorza. Este núcleo do romance é misterioso e por vezes embebido no fantástico ou no sobrenatural – embora Andrade não seja exatamente um expoente dessa vertente da literatura latino-americana. No prefácio da primeira edição, Ivan Ângelo escreve: “Seu desvio da realidade é não-mágico (...) é urbano, cerebral, busca efeitos de ruptura, não o encantamento”.
O livro passa também a sobrevoar a moça seduzida, de nome Eleonora, que está noiva de certo Amadeo, que encarna o sonho burguês de casar e ter uma vida confortável e estável, tal qual seus pais, chamados jocosamente de PapAmadeo e MamAmadea – que, na verdade, vivem imersos em desconfianças e neuroses. Mas o narrador sabe que o amor dos noivos é fadado a morrer aos poucos, não por culpa de Eleonora ou Amadeo, mas simplesmente porque a posse do objeto amado faz morrer a paixão – que se desloca para o desconhecido, para o não vivido, para a escolha que não se fez. É aí que o narrador reside, como uma sombra, ciente de sua força de atração, mas também da impossibilidade de sua empreitada. Ao longo da história, surgem os olhos do diabo, agourentos, que a tudo espreitam.
Em 2023, 35 anos após ler Os olhos do diabo, peguei o livro da minha estante e me perguntei por onde andaria Jorge Andrade, aquele homem de olhar grave, autor deste romance que eu tanto admiro. Segundo a orelha do livro, ele era autor de uma “vasta obra”. Por que essa obra não havia chegado ao Brasil? Resolvi fazer uma busca na Internet, e encontrei o velho escritor nas redes sociais. Ele havia voltado a morar em Buenos Aires, após 30 anos de autoexílio na Europa. Começamos a trocar mensagens, e pedi sua autorização para fazer uma segunda edição do romance, ao que ele prontamente aquiesceu. O resultado é esta reedição, em capa dura e com nova tradução, feita por Caléu Nilson Moraes.
O editor de Andrade na Espanha, o finado Mario Muchnik, dizia que ele escreve “con pulso de cirujano”. É isso que se percebe lendo este romance, extraordinário em todos os sentidos. Espero que esta edição faça com que o brilhante autor argentino ganhe novos leitores no Brasil.
Marcelo Nunes