Nasce a Editora Nauta

Nasce a Editora Nauta

No dia 12 julho deste ano, eu estava de férias em Paris, e me preparava para sair do apartamento que havia alugado com minha mulher e minha filha pequena, quando li sobre a  morte de Milan Kundera, um escritor exilado em Paris, entre uma multidão de escritores exilados na cidade desde o início do Século 20. Apesar da tristeza com a morte de Kundera, achei curioso, pois naquele dia eu planejava visitar a livraria Shakespeare and Company e lá anunciar que estava abrindo a minha própria editora, a Nauta. Curioso pois a livraria, em suas duas “vidas”, foi um lar e um porto seguro para escritores expatriados de todo mundo, assim como Kundera. Eu havia escolhido fazer o anúncio diante da livraria pois sempre admirei os seus dois proprietários – primeiro, Sylvia Beach, e depois, George Whitman – pois ambos simbolizam, para mim, o verdadeiro amor à literatura e aos escritores, com sua atitude de generosidade e desapego a coisas materiais.

A história começa nos últimos anos da Primeira Guerra Mundial, quando a norte-americana Sylvia Beach foi a Paris estudar Literatura Francesa. Lá ela conheceu a francesa Adrienne Monnier, proprietária da livraria Maison des Amis des Livres, localizada na Rue de L’Odéon, no 6º arrondissement, no coração boêmio da margem esquerda do Rio Sena, a Rive Gauche. Elas se tornaram amigas, e depois um casal – até a morte de Monnier em 1955. Monnier só vendia livros de autores franceses, e apoiou Sylvia quando ela decidiu também abrir uma livraria, só com títulos em inglês, para os muitos norte-americanos que viviam na cidade, por opção ou forçados pela Grande Guerra. E assim nasceu a Shakespeare and Company, no ano de 1919, na Rue Dupuytren, também no 6º arrondissement. Dois anos depois, ela se mudou para a Rue de L’Odéon, de frente à Maison de Monnier.

Não demorou para a livraria atrair escritores tanto franceses quanto americanos, como André Chamson, André Gide, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, T.S. Eliot e muitos outros. Sylvia não só vendia livros, como também os emprestava, além de receber a correspondência desses escritores (muitos não tinham endereço fixo), emprestar dinheiro, divulgar seus livros e ajudá-los de todas as formas. A gratidão de Hemingway a Sylvia era tamanha que, anos depois, quando ele já era famoso e a livraria não ia bem, ele fez várias leituras de sua obra no local para arrecadar dinheiro, apesar de odiar ler em público (há um capítulo inteiro sobre a Shakespeare and Company em seu livro "Paris é uma festa"). Mas Sylvia Beach inscreveria para sempre o seu nome na história da literatura mundial quando recebeu na Shakespeare and Company um expatriado irlandês, James Joyce, que à época andava frustrado, pois nenhuma editora queria publicar seu romance Ulysses, no qual ele havia trabalhado durante sete anos, por considerá-lo obsceno. Sylvia nos conta que sentiu vontade de ajudar Joyce, apesar de ser livreira, e não editora, e lhe perguntou: “Você gostaria que eu publicasse o seu livro?”, ao que ele imediatamente respondeu: “Sim, eu gostaria”. E assim veio ao mundo Ulysses, em 1922, o romance mais importante do Século 20. Após o sucesso estrondoso do livro, Joyce vendeu os direitos para editoras grandes, pois precisava de dinheiro para cuidar da família e da filha doente. Sylvia sofreu um enorme prejuízo financeiro, mas jamais se ressentiu; para ela, o que importava era ter ajudado um grande escritor numa hora difícil. Após a ocupação nazista de Paris, Sylvia foi obrigada a fechar a livraria, em 1941, e ela jamais foi reaberta.

A “segunda vida” da Shakespeare and Company começou em 1946, quando o também norte-americano George Whitman chegou em Paris para trabalhar num hospital para órfãos da guerra. George, após se formar em Jornalismo na Universidade de Boston, em 1935, passou alguns anos como andarilho, vivendo à custa da bondade de estranhos por todos os Estados Unidos, México e América Central. Esses anos forjaram o seu caráter e fizeram com que ele tivesse uma dívida de gratidão com estranhos – anos depois, ele inscreveria nas paredes e escadas de sua livraria: “Dê o que puder, pegue o que precisar” e “Não seja inospitaleiro com um estranho, pois ele pode ser um anjo disfarçado”. Em 1951, George Whitman abriu uma pequena livraria, chamada Le Mistral, no nº 37 da Rue de la Bûcherie, no 5º arrondissement, também à margem esquerda do Sena – onde se encontra até hoje. Em 1964, ele a rebatizou como Shakespeare and Company, em homenagem à amiga Sylvia Beach, morta dois anos antes, que havia chamado a livraria de George de sua “sucessora espiritual”. Essa segunda versão da livraria também atrairia uma multidão de escritores exilados, inclusive os americanos da geração Beat, como Lawrence Ferlinghetti, Allen Ginsberg, Gregory Corso e William S. Burroughs. Outros visitantes constantes, através dos anos, foram Anaïs Nin, Henry Miller, Julio Cortázar, Max Ernst, Bertold Brecht e William Saroyan. George Whitman chamava a sua livraria de uma “utopia socialista disfarçada de livraria” e, fazendo jus ao epíteto, abrigava jovens escritores, que podiam dormir e fazer refeições na Shakespeare and Company, em troca de algumas horas de trabalho. Após a morte de George, em 2011, aos 98 anos, a livraria passou a ser administrada por sua filha, Sylvia Whitman.

Entrar na Shakespeare and Company é como voltar no tempo. Lá estão os velhos sofás e camas onde dormiam os jovens escritores que George abrigava; há uma sala com uma escrivaninha e uma máquina de escrever, onde qualquer um pode se sentar e escrever à vontade; há uma sala de leitura, com poltronas e divãs, onde se pode passar horas lendo os livros antigos da biblioteca pessoal de George. O clima é de saudosismo e de acolhimento. Talvez a Shakespeare and Company represente um tempo que não voltará mais, neste mundo onde o individualismo e o capitalismo venceram. Ou talvez não. Talvez, se nos inspirarmos em Sylvia Beach e George Whitman, nós possamos agir de forma mais humana e desprendida, guiados apenas pelo amor aos livros – e àqueles que escrevem e leem os livros. Eu estou abrindo uma pequena editora, com poucos recursos e muita vontade de dar certo. E quero acreditar que o que me move é o mesmo que movia essas duas pessoas tão especiais e tão abnegadas – guardadas as devidas proporções de sua importância histórica. George Whitman dizia que as únicas coisas que importam são o amor e a amizade. E eu só posso concordar com ele.

Marcelo Nunes, 19 de julho de 2023

 

 

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