Leia uma entrevista com Mário Ramos, tradutor de "Zanguézi"
Leia uma entrevista com Mário Ramos, tradutor de "Zanguézi"

Mario Ramos nasceu em Guarujá, em 1971, é poeta, professor de literatura russa na Universidade de São Paulo desde 2010 e tradutor de poesia e prosa russa, tendo vertido para o português vários autores, como o próprio Velimir Khlébnikov (poesia lírica e prosa), Nikolai Gógol, Victor Pelévin, Boris Pasternak, Vladímir Sorókin, o filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin e outros. Em suas pesquisas de mestrado e doutorado e também em pesquisas realizadas como docente, abordou a obra literária de Khlébnikov sob diferentes aspectos. Leia a seguir uma entrevista que ele nos concedeu.
1. Como surgiu o seu interesse na literatura russa?
Comecei a me interessar pela literatura russa ali em torno dos 15, 16 anos de idade, quando descobri alguns livros de Dostoiévski (lembro-me que o primeiro foi Recordações da Casa dos Mortos) em um pequeno sebo em minha cidade, Santos. Depois li O Idiota, também de Dostoiévski, uma ou outra coisa que surgia de Tolstói, Tchékhov, Maiakóvski, quase sempre em traduções indiretas. Aos poucos fui construindo uma imagem muito íntima da Rússia, a partir de sua literatura, até descobrir que havia o curso de russo na Universidade de São Paulo, no qual interessei em 1994. Daí veio o contato com a poesia russa, na leitura da coletânea Poesia Russa Moderna, com tradução e organização de Bóris Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos, e a identidade imediata com as vanguardas russas e, principalmente, com a poesia de Khlébnikov.
2. Quanto ao idioma russo, há alguma particularidade que você gostaria de enfatizar?
Do ponto de vista de sua estrutura, o russo é uma língua sintética, ou seja, suas palavras são flexionadas a partir do caso gramatical que indicam. Isso permite que se diga mais com menor número de palavras, além da amplitude de possibilidades de mobilização morfológica para criação de efeitos sonoros e relações de sentido, o que se torna um desafio para o trabalho de tradução, principalmente de poesia. Por outro lado, considero o russo em alguns aspectos, como fonética ou entonação, um tanto semelhante ao português, por incrível que pareça. Há uma familiaridade sonora perceptível tanto para falantes do russo, ao ouvirem uma conversação em português, quanto o contrário.
3. Você foi professor-leitor na Universidade Estatal de Moscou, de 2005 a 2009. Como foi a experiência?
Foi uma das experiências mais marcantes em minha vida, com certeza. Lá eu ensinava língua portuguesa (na variante brasileira), literatura e cultura brasileira, enquanto, ao mesmo tempo, vivia uma profunda imersão na língua e na cultura russa. Foi uma experiência que me permitiu descobrir a Rússia e redescobrir o Brasil, de um outro ponto de vista, além de conhecer novas nuances de uma literatura que eu estudava, antes, à distância. Mas acima de tudo o fato mais relevante dessa experiência foi vivenciar a complexidade da cultura e da alma russa no cotidiano, no contato com o homem russo comum, em seu dia-a-dia, em sua elevada essência espiritual e seu olhar atento e profundo sobre o mundo.
4. Quais os maiores desafios da tradução de poesia? E quais foram os desafios específicos ao traduzir Zanguézi?
Como eu disse acima, há características sintáticas e morfológicas distintas do português que, por sua natureza, já representam um desafio para a tradução de poesia. Outros fatores também devem ser levados em consideração, como a forma, por exemplo. O sistema métrico russo é sílabo-tônico, medido em pés, enquanto nosso sistema é silábico, e o tradutor deve estar atento ao risco de, ao tentar ser extremamente fiel à forma do poema em russo, criar versos que podem soar truncados, artificiais, em língua portuguesa. Historicamente, os poetas russos são bastante preocupados com a estrutura rítmico-métrica do poema, até os dias de hoje (há muito pouco de poesia em verso livre, na lírica russa, em muito mais o que se pode chamar de polimetria). O que quero dizer é que o tradutor precisa se manter nessa linha tênue, em que deve estar sempre atento à estrutural formal do poema traduzido, mas buscando formas equivalentes em nossa língua, em nosso próprio sistema lírico, formas que nem sempre precisam corresponder ao tamanho ou à estrutura rítmica do verso original.
Zanguézi é um grande desafio (digo isso em tempo presente, pois acredito que sempre voltarei a retraduzi-lo, de tempos em tempos) devido ao caráter de inventividade com a linguagem poética típica da obra de Khlébnikov. Em Zanguézi, encontramos longos poemas narrativos, muitas vezes compostos por blocos de versos polimétricos que se inter-relacionam, o que é preciso tentar reproduzir de alguma forma. A profusão de neologismos a partir da união de raízes de palavras distintas ou da alteração inusitada de estruturas morfológicas, de sufixos e prefixos que atribuem novos significados à palavra russa, é também um desafio que requer muito de pesquisa linguística, de um trabalho minucioso e laboratorial de dissecação de cada palavra criativa com o objetivo de resgatar, dentro dela, referências aos diferentes novos sentidos que provoca. Só depois disso vem o trabalho lúdico, prazeroso, de recriar equivalentes possíveis em português. Mas considero como o maior desafio de traduzir Zanguézi, apesar de toda essa complexidade, encontrar o tom “infantilista”, quase pueril, no melhor sentido da palavra, que é característico de toda a poesia khlebnikoviana. A “ideia”, em Khlébnikov, é bastante complexa, mas o resultado final, materializado em palavras, é de simplicidade e pureza tocantes. Acredito que o tradutor de Khlébnikov deve estar atento para não se deixar seduzir por essa complexidade e intelectualizar demais certos recursos, sob o risco de perder a essência do jogo, do prazer em manipular livremente a língua.
5. Você também possui um trabalho autoral, tendo publicado o livro de poemas Labirinto de Vidro em 2024, pela editora Sinete. Fale-nos sobre ele.
O Labirinto de Vidro é meu primeiro livro autoral de poemas. Eu escrevo desde a adolescência, mas só havia publicado um poema aqui, outro ali, geralmente em coletâneas. Em termos de temática, trata-se de um livro pequeno, no qual trabalho a ideia central de um eu que enfrenta a si mesmo, ao confrontar suas referências, literárias ou mais subjetivas, e que se desdobra na fera que o persegue e, às vezes, na própria imagem do labirinto. Eu não diria que haja relação direta, em meu livro, com qualquer autor russo, mais especificamente. Mas acredito que minha afinidade com o poema curto, com uma certa poética da concisão, tenha se desenvolvido a partir do meu contato com a literatura e com a própria língua russa durante os últimos 30 anos.
Compre os livros aqui: