Leia uma entrevista com Caléu Moraes

Leia uma entrevista com Caléu Moraes

Caléu Moraes é catarinense, graduado em História, e fez mestrado em Antropologia Social e doutorado em Estudos da Tradução pela UFSC. Venceu o Concurso de Contos Silveira de Souza, da mesma UFSC, com a obra Guia literário para machos. É autor dos romances Declínio e queda de mim mesmo, As aventuras de Lorde Nélson, Satíricon e Schopenhauer e o Kung Fu. Recentemente a Nauta publicou o seu mais novo romance, A morte do alquimista. Leia abaixo uma entrevista que fizemos com ele:

 



Vendo a sua formação, você é graduado em História, tem mestrado em Antropologia Social e doutorado em Estudos da Tradução. No que isso tudo ajudou - ou atrapalhou – a sua escrita?

Sem dúvida ajudou pra caramba. Quer dizer, desde muito jovem eu queria ser escritor, tinha dificuldades para descobrir um estilo no qual me sentisse confortável para escrever. O que eu fazia eram pastiches mais ou menos ridículos de autores de que gostava, mesmo que tão diferentes um do outro, como García Márquez ou Borges. Felizmente, sempre fui um leitor voraz e curioso. Muito jovem, muito jovem mesmo, decidi decorar todos os Prêmio Nobel de Literatura. Era minha paixão por listas... Então, eu li todos eles, o que me garantiu, creio, uma diversidade de estilos e temáticas. Acabei me interessando pelos costumes de outros povos que via em suas obras e segui pela graduação em História. Logo que ingressei no curso percebi a impostura que é produzir um texto que conte a verdade. Mas isso é outra história. Em todo o caso, o que quero dizer é que estudar todas estas coisas, Antropologia (que é, creio, o que me salvou da estupidez completa, e que é uma coisa muito linda), levou-me a escrever de uma forma, sei lá, meio ensaística. Quando descobri, então, Kenzaburo Oe (o único autor que tento, de fato, despudoradamente, imitar), pensei: “Caramba! É isto mesmo o que quero fazer... Escrever desse jeito, num híbrido de ensaio e romance”. O cara é o mestre, o verdadeiro mestre desta coisa. Aí, tudo isso que estudei veio a calhar. Hoje, pensando bem, eu já gostava destes textos híbridos quando muito jovem. Guardo uma recordação de que, talvez aos 12 anos, li um texto chamado Os cogumelos alucinógenos do México. Fiquei boquiaberto. Não lembro quem escreveu, tampouco o encontrei de novo. Mas quando o li achei que lia, sei lá, uma reportagem. Havia dados, citações e o caramba. Depois descobri que era um conto.   

 

Falando em tradução, você publicou em 2021, pela editoria Faria e Silva, uma suposta tradução do latim do Livro 1 do Satíricon, de Petrônio. Porém, o primeiro livro foi perdido, e a sua tradução é uma invenção. O livro, na verdade, é puro Caléu Moraes. O que o levou a praticar esse embuste?

A simples paixão pelo embuste, pela mentira. É isto mesmo. Gosto de mentir. Na literatura posso fazê-lo sem mais consequências que o ódio de um que outro leitor. Por exemplo, eu entendo William Ireland, que falsificou uma enormidade de textos que teriam pertencido a Shakespeare; ou George Psalmanazar, um inglês que fingiu, na Inglaterra, ser um nativo de Formosa. O cara escreveu até sobre o alfabeto da nação do Oriente (que ele inventou, evidentemente). É uma falha de caráter, possivelmente. Mas não dou a mínima. Mentir me diverte. Ler as mentiras dos outros, também. Além disso, se eu fosse polidáctilo, apostaria o décimo primeiro dedo, que todos os escritores mentem, mesmo quando escrevem autobiografias ou alguma autoficção paumole, com o evidente propósito de se autopromover, ou ainda, e principalmente, em entrevistas. Sobre meu Satíricon, de fato, lá está tudo o que me interessa em literatura: a provocação, a irresponsabilidade, a teimosia, a estupidez, o livro dentro do livro, a reflexão sobre o que é a literatura, o desarranjo e o experimento... O risco, sobretudo. O risco de escrever um péssimo livro. Meu plano é chegar ao livro XIV (que de fato existe), isto é, dar ao livro de Petrônio os 13 primeiros. Já tenho muito rascunho. Espero um dia terminá-lo.

 

Uma das principais características da sua literatura é a mistura de pornografia e erudição, em altas doses. As duas coisas se completam? Ou no fundo são a mesma coisa?

Uma das principais características da minha literatura é o desrespeito. A começar por mim mesmo. Depois, vem a pornografia e a erudição, talvez em igual medida. Sempre que publico um livro, meu pai o folheia na esperança de não encontrar um palavrão. Quando encontra, fica chateado. Ainda vou escrever algum romance sem pornografia, para deixá-lo contente. No mais, acho que são, sim, pornografia e erudição, a mesma coisa: ambas se caracterizam pelo exagero. E são coisas muito importantes: as duas têm a ver com desejo, com vontade. Que é o que me interessa. A parte pornográfica dos meus livros é para aliviar a tensão do leitor erudito; a parte erudita, é para dar um descanso ao leitor tarado.

 

Você acha que escreve sempre o mesmo livro?  Acha que todo escritor que presta escreve sempre o mesmo livro?

Pergunta clássica essa. Lembro que García Márquez respondeu a Plinio Apuleyo Mendoza que sim e que seu livro era o da solidão. Se eu lhe disser a mesma coisa, tiro 10 na prova? Seja como for, creio que todo o escritor escreve o mesmo livro; agregaria que o meu é o livro ruim, o pior livro de todos os tempos. Advogo o direito de escrever mal. Em tempos de Bábel, que também lutava pelo direito de escrever mal, fazê-lo era escrever fora dos moldes do realismo socialista. Hoje, escrever mal é escrever exatamente o contrário do que os editores, os leitores, o mercado editorial, e, sobretudo, os colegas escritores, esperam que eu escreva. Na verdade, hoje, escrever mal parece, também, escrever fora dos moldes do realismo socialista... Este, claro, um pouco mais elaborado. Ou, ainda, talvez meu único livro, o que escrevo deste jeito arrevesado, seja O livro da impotência. Ou, O livro da potência. Lembro que, perceba, um dos primeiros romances (senão o primeiro, o que mais se parece com isso que escrevemos hoje) é o Satíricon, de Petrônio. Neste, o protagonista luta, por boa parte, contra a impotência. Acho que escrevo a continuação de Petrônio. Sigo pela busca da potência. Com isso, não me refiro apenas à dimensão sexual (que é tudo, é verdade), mas também à essa coisa da vida, a essa gana de viver. A potência pode ser isso mesmo, a chama, aquilo que nos mantém vivos. Então, escrevo para não morrer. O livro em que trabalho é o livro da lava, para lembrar do poema de Hilda Hilst, que depois é pó, que depois é nada.

 

Você é um escritor controverso, politicamente incorreto, de língua solta. Já recebeu ameaças de morte ou algo parecido? Já apanhou da sua esposa?

As únicas ameaças de morte que recebi foram as da minha mulher, que às vezes censura um que outro trecho de um livro. Eu não diria que sou um escritor politicamente incorreto. Isso seria adotar uma postura. Creio que sou um escritor sem ideias. É dificílimo escrever sobre nada. Penso que vá evoluir para o silêncio... Como Miró, que começou pintando aqueles seus carnavais e terminou com uma única linha numa tela enorme e branca. Agora haters tenho uma porção. Pessoas que avaliam meus livros como grotescos, nojentos. Entre outros elogios. São pessoas que não diferenciam um romance da bula de um remédio. A literatura é tão mais complexa que os esforços sobre-humanos das gentes em classificar os autores de “machistas”, “nazistas”, “comunistas” ou “pianistas”.

 

Onde termina o homem e começa o personagem dos seus livros? Há uma justaposição dos dois, em alguma medida? O herói/anti-herói dos seus romances:

a) é você (sem dúvida esta é a resposta correta; o macaco que aparece no Satíricon, os camelos com luzes nos olhos, em A morte do alquimista, ou, ainda no mesmo livro, o narrador que ameaça Philip Roth com uma arma ou se arrasta pelo deserto do Marrocos, ou, talvez, o cara que tentou matar Salman Rushdie [em As aventuras de Lorde Nélson], todos são eu).

b) não é você (sem dúvida esta é a resposta correta. Grande parte do que ocorre com meus narradores nunca aconteceu comigo, o que eles pensam, eu mesmo não penso... Acho. Então, às vezes me espanto pelas pessoas realmente acharem que estou fazendo autoficção. O que eu faço é ficção. De alguma forma ela soa tão verdadeira que parece uma autobiografia. Isto me diverte. A grande fórmula para definir o que tento fazer é de Mutarelli: autorealismomágico).

c) é você e não é você ao mesmo tempo (sem dúvida esta é a resposta correta. A mais confortável, por assim dizer. Porque tudo, qualquer coisa, acontece ao mesmo tempo. “Quem matou o morto?”, pergunta Richard Francis Burton. “O arqueiro ou a flecha?”).

 

Quem são os seus heróis literários? Tem um livro favorito?

Kenzaburo Oe. V. S. Naipaul. Thomas Bernhard. Certamente há mais. Philip Roth. Vila-Matas. Hemingway. Coetzee. Sebald. Carrère. Graciliano Ramos. Péter Esterházy. E o grande, grande Saul Bellow. Estes são aqueles para os quais sempre volto. Além destes caras, gosto da literatura heteróclita. A literatura B. A literatura alternativa. A desconhecida... E, também, a que está por escrever. Quanto ao livro favorito, depende do dia em que respondo à pergunta. Hoje, por exemplo, é Jovens de um novo tempo, despertai!. Antes de ontem era O massagista místico. Este último, caramba, é um dos melhores livros que li nesta vida azarenta.

 

Você acabou de ter um filho. Se, ao crescer, ele disser que deseja ser escritor, o que você dirá a ele?

Tente fazer melhor.

 

    

            

        

          

 

 

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