Leia um trecho de "Sob o céu vermelho"

Leia um trecho de "Sob o céu vermelho"

[I20/3466: Documento Word
encontrado no notebook pessoal
de Tiago N. Simões, intitulado
“COMO EU APRENDI A
PARAR DE ME PREOCUPAR
E AMAR O DESASTRE
CLIMÁTICO”.]

 

I

 

   Eu estava lá quando aconteceu. Todos estávamos.

   Suponho que pode ter sido praga, mas era uma loucura desde muito antes de começar. O sonho de Ícaro é fichinha comparado aos delírios dos astronautas. O que leva alguém a se submeter a décadas de estudos sobre física, química, biologia e outras ciências sem alma; exercitar o corpo à exaustão submerso em uma piscina vestindo um traje de 130 quilos todo dia por três anos; militarizar a mente até especializar-se em milhares de operações e manobras que de nada valerão para o amor, a amizade ou a felicidade, para, com sorte, ter uma chance de trabalhar no ambiente mais inóspito onde a raça humana já estendeu suas garras?

   Por que, exatamente? Pelo futuro? Os primeiros astronautas foram marionetes de um jogo político, uma queda de braço mecânico. É claro, por causa desse jogo é que temos milhares de satélites nos provendo internet, GPS, TV, previsão do tempo, espionagem 24 horas por dia. Mas nenhum astronauta carregou suas cruzes sonhando com mais opções de reality shows. O desejo irredutível que os guiou provavelmente associou-se em algum momento a palavras como progresso, avanço e inovação, mas o futuro na maior parte do tempo é um mundo de formas vagas e promessas vazias. O progresso não pode ter passado de desculpa, justificativa arranjada em retrospecto.

   A resposta deve estar em outro lugar. Olhando a cápsula arredondada do foguete, coroando o aspecto abusivamente fálico, algum psicanalista pode sentir-se tentado a nomear a vontade irredutível de pulsão reprimida (ou, sendo otimista, sublimada) e atribuir a sede de aventura dos astronautas a um desejo altamente neurótico de realizar algo apenas porque é extremamente difícil, ou mesmo a um desejo mais que normal, constituinte da humanidade, de alcançar um lugar em que o silêncio seja tão completo que finalmente amenize as vozes ecoantes na caixa craniana. No caso, um retorno ao útero, boiando em gravidade zero no líquido amniótico. Todo o avanço tecnológico empregado para tentarmos voltar a ser macacos. Soa bem, mas não sei de nenhum astronauta que se deitou no divã, então essas hipóteses não passam de especulações de mesmo valor que o chavão: a humanidade naturalmente busca o desconhecido.

   Naquele dia, porém, a missão era muito clara. Não havia nada de novo a ser descoberto, tratava-se de retornar a Marte para construir a infraestrutura necessária à primeira colônia. Um sonho da época de meus pais. Isso nos permite pensar que talvez o desejo do astronauta seja bem mais fútil do que aparenta, um simples desejo de fugir, de distanciar-se. O mesmo desejo de muitos padres, gurus e ermitões. A ciência, afinal, muitas vezes já nos serviu para nos afastar da realidade sem nenhuma expectativa de retorno. Abstrações que perderam a lembrança do concreto. Intelectualismos vazios. Palavras e números ocos que brincam entre si no mundo das ideias. Para que precisávamos de uma colônia em Marte? Porque isso era o progresso. Por quê? Porque é difícil. Porque vai gerar inovações, empregos. Porque podemos ter um reality show em Marte. Se batermos nas palavras o suficiente, elas nos darão uma desculpa.

   É o que estou tentando fazer agora? Achar uma desculpa? Pintar um sentido em retrospecto? Todo sentido não é em retrospecto? Se ele é propriamente humano, não pode ser inerente às coisas. Quando temos um sonho, voltando aos psicanalistas, o sentido que atribuímos a ele diz mais que a ordenação de seus elementos? Quando damos uma explicação a algo, não estamos simultaneamente transformando nós mesmos em pessoas capazes de aceitar essa explicação, independentemente se ela é correta ou não? Dar um sentido é como observar uma ilusão de ótica. Assim que a deciframos, jamais conseguimos retornar à imagem desconexa que víamos. E se existia outra forma de decifrá-la, agora perdida para sempre? E se eu quiser voltar a ver apenas fragmentos? Suponho que muito da arte visual pós-moderna tenha a ver com isso, tentar tornar-se estranho ao que é familiar, esculpir-nos ao invés de deglutirmos. Mas esculpir-nos até o quê? O que faremos quando aceitarmos que não somos nada e que tudo aquilo que constitui nosso ponto de vista não passa de arremedos arbitrários? Quando perdermos nós mesmos de vista, o que sobrará? Será que quando o primeiro crítico chegar a esse ponto, ele começará a achar as pinturas rupestres a coisa mais inovadora da história?

   O maior foguete espacial de todos os tempos e um dos piores designs de produto. A pintura ferrosa camuflada foi parte de uma campanha viral em que imagens supostamente vazadas dos satélites de Marte indicavam sinais de vida alienígena. O dono da empresa veio a público declarar que os astronautas levariam armamento pesado para enfrentar possíveis ameaças. É claro que nada fazia sentido desde o começo. A última campanha viral que possivelmente enganou alguém foi a do último Godzilla. Era apenas um teatro a nível mundial em que participamos muito brevemente, trazendo o assunto à tona quando a mesa preenchia-se de silêncio e descartando-o logo em seguida. Mas talvez o assunto mais lucrativo seja aquele sobre o qual falamos quando não temos nada a dizer. Monopolizar a produção de assuntos medíocres é muito mais fácil e pragmático do que dominar algum escopo específico da produção de conhecimento. Afinal, neurocientistas ou pedreiros, temos sempre algo em comum a comentar. E vendeu-se muitas miniaturas dos “palácios marcianos”. A pintura camuflada era a última vírgula da piada que saturou-se ao nascer. Alguns dizem que ela foi a culpada. Surgiram hipóteses de que a tinta liberava algum tipo de substância corrosiva quando exposta a altas temperaturas, mas isso deve ser mentira. O que corria mesmo pelos teclados dos comentaristas da vida era a genial percepção de que a empresa focou-se tanto no marketing que menosprezou as redundâncias de segurança. Contudo, há um ponto, basta olhar os números para perceber que o principal retorno do programa de colonização de Marte não era a possibilidade de viver no planeta vermelho, algo que demoraria muitas décadas para ser viabilizado, mas o merchandising envolvido. Antes do lançamento, a empresa já havia superado seis bilhões de dólares vendendo reservas turísticas, miniaturas de foguete, globos de Marte, brinquedos e pelúcias de marcianos e seus palácios, carpetes de boas vindas simulando a pegada alienígena, adereços para enólogos com a frase “eu vinho em paz”, brinquedos para parques de diversões e dois blockbusters. Reavivar o mercado, o eterno e moribundo mercado, foi sempre esse o sentido; o objetivo nunca foi ir a Marte.

   Mas como o sucesso a longo prazo da campanha dependia do sucesso da missão, é estranho pensar em tamanho descaso com redundâncias. Alguns ironizam que a precarização das normas de segurança do trabalho finalmente saiu pela culatra, e a comicidade parece galvanizar a frase de uma assertividade irrefutável. Mas o fato é que essas teorias só se sustentam por tanto tempo porque é praticamente impossível descobrir a verdade. Os destroços não dizem nada. A telemetria apenas indicou que o problema iniciou-se nas turbinas 8 e 9, mas logo generalizou-se para o resto da nave. A equipe de solo, talvez os únicos com a resposta, nunca veio a público, provavelmente assinaram um contrato. Em vista da ausência de objetividade, a possibilidade dramática é a que mais me cativa. Sabotagem. Mas não de empresas rivais, como muitos defendem. Como os astronautas apenas embarcariam através de um acoplamento na Estação Espacial Internacional, após a liberação do primeiro módulo, não havia impedimentos morais. Me consola pensar que todo o dinheiro do mundo de nada importou perante a alguém com motivo e oportunidade. Um ex-funcionário, um filho invejoso, um suicida que entrou na fuselagem alguns minutos antes do lançamento e outras opções estrambólicas. Porém, de novo, isso sou apenas eu procurando um sentido em retrospecto. A condenação da humanidade advinda de um crime passional, a degeneração comercial vingada por uma moral medievalista, o macro e o microcosmos alinhados. Mas o mundo não tem drama há muito, muito tempo. Tudo é extremamente impessoal. Honra é uma abstração. Até onde sabemos, é possível que tenha sido uma colisão com um urubu.

   Nem mesmo a explosão, a nova maior explosão não nuclear da história, foi impressionante. Tendo a vastidão azul por trás, não era possível ter noção de tamanho. Poderia ser uma explosão em miniatura ampliada como nos filmes antigos. Ou CGI. Ninguém saberia dizer a diferença. As imagens pouco valem. Sinto que me tornei insensível a muitas coisas.

   As reservas turísticas não foram reembolsadas até hoje.

 

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