Leia um trecho de "O livro dos cem anos"

Leia um trecho de "O livro dos cem anos"

 

O velho de roupa azul e barba longa dizia mesmo, repetia sempre, sem cansar, que o fim do mundo estava chegando porque a gente não tinha mais remédio ou cura, mas eu não acreditava muito e nem queria, não tinha feito nada de errado para merecer essa palmatória cheia de farpas de mandacaru. O mundo não podia acabar antes que eu pudesse crescer e ser homem de calça e cinto como meu pai, que eu pudesse botar alpercata na estrada e descobrir o que tinha depois da serra, se o vento soprava de lá, realizar um querer de achar onde era o começo de tudo. O mundo também não podia acabar sem que eu tivesse uma namorada que me deixasse passear de mão dada na praça do coreto em dia de missa, não tem coisa melhor, me diziam, que uma mão de veludo segurando a nossa. Vi depois que cresci mais que não tem mesmo. Nada disso. Se fosse para findar mesmo, então para que fazer uma casa para Deus, como ele queria, e ainda mais de paredes de barro amassado com a pouca água que a gente tinha para viver?

Fizeram isso, de botar no chão e levar, com quatro troncos, mas no último, um pau de maçaranduba que dois homens abraçavam, empacaram. Nossos bois já estavam cansados e era peso demais para eles, mesmo em uma missão tão merecedora. O padre, que mais uma vez tinha aparecido em casa bem na hora do almoço, havia ficado para conhecer o homem que se achava com mais direito sobre a religião das pessoas do que ele, e foi perto dar a conferência cristã. Chegou e já foi logo inflando o peito, pavoneando a batina ainda respingada de farinha, questionando o direito de outros não pensarem como ele. O Beato o cumprimentou, Padre Eusébio reagiu com o sinal da Cruz e um Vade Retro bem Vade Retro, puxado do peito em voz de sinceridade, daqueles fincados em certezas e verdades. Os ajudantes do Conselheiro fecharam a cara e foi João Abade que respondeu, apontando para o padre com a faca. Disse em alto e bom som que Satanás tinha muitos disfarces e se escondia até em padres, já tinha cruzado com vários assim e reconhecia pelo cheiro. E o dele, com aquela batina engomada, cheirava a enxofre. Pior que eu achava a mesma coisa, mas minha coragem tinha a metade do tamanho da dele. O Beato interrompeu dizendo que o Bem no coração, como eles todos ali tinham, não deixava que tivessem medo de nada e nem de ninguém.

Padre Eusébio ficou com a cara vermelha, as mãos segurando o crucifixo, minha mãe até falou baixo para ele ter calma, assustada com a fúria amarrada naquele corpo. Os ajudantes do Beato retomaram o trabalho, mais que nunca agora precisavam levar aquela maçaranduba que já estava ungida pelo embate celestial. O Conselheiro era o anjo, puro, sério, leve. Padre Eusébio era o poder, se Deus ou Diabo, isso nem eu tinha coragem de tentar adivinhar. Então jogou a carta: gritou que a tora era pesada porque o Divino não permitiria que almas impuras a carregassem para uma falsa igreja, para adoradores de ídolos sem linha e costura com o Céu. Eles jamais conseguiriam levar a madeira para o tal Belo Monte. Meu pai pediu calma a ele, disse que tinha empenhado a palavra para ajudar aquelas pessoas sem nada em troca, e que não recuaria do que prometera. Honrar a palavra é honrar a Deus também, ponderou.

O Beato levantou a mão, em gesto de paz e sabedoria. Deu um passo à frente e, olhando para nós, colocou as duas mãos sobre o tronco. Daí virou para João Abade e fez um sim com a cabeça. Os ajudantes se aproximaram e, com as mesmas mãos com as quais haviam tentado antes, sem sucesso, agora ergueram junto com ele a maçaranduba como se fosse uma daquelas penas de galinha quando pegam para cozinhar, de tão leve, e saíram todos caminhando sem olhar para nós. Olhei para o Padre Eusébio, ele estava ajoelhado, chorando de soluçar pelo Milagre que jamais poderia fazer.

 

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