Leia um trecho de "O domínio da violência"

Leia um trecho de "O domínio da violência"

De Marcelo Nunes

 

“Filho meu não vai ser veado! Prefiro que ele morra!” 

Vanessa observa a cidade pela janela do Uber, e relembra essas palavras, tão duras, que de tempos em tempos emergem, e que trazem junto os sentimentos que surgiram nela como uma doença que se descobre, como um defeito que se enxerga no espelho, de repente. Ela não gostava de espelhos, porque eles mentiam. Mentiram e mentiram durante anos, deturparam a realidade, rechaçaram o que ela sentia, lá no fundo. Existir, para Vanessa, era uma luta sem trégua, quase o contrário de existir. Existir era ser repelida pelo espelho, pelo seu pai, pelo mundo. Ela ouviu essas palavras no dia em que fez quinze anos, o seu presente de debutante. Ela havia marcado de sair com uma amiga à noite, para comemorar, e planejou ir à casa dela antes, para se arrumar e sair montada pela primeira vez. Ela estava ansiosa, e decidiu provar a roupa em casa, à tarde. Foi então que o seu pai entrou no quarto de repente, e a viu fazendo uma pose diante do espelho, com a calça de couro rosa apertadíssima, que ela havia acabado de comprar, uma blusa baby look com brilho, sapatos de salto alto, e o cabelo, que já estava comprido, preso num rabo de cavalo. Ele avançou sobre ela, e a estapeou com força. Vanessa tentou se esquivar, ele continuou batendo nela. Sua mãe veio a seu socorro, e o levou para a sala, e foi nesse momento que ele disse essa frase. Vanessa não se importou com o tapa, não se importou com a dor física, mas a frase ficou gravada em sua memória, em seu coração, em sua alma: “Prefiro que ele morra”. Tempos depois, após muito refletir, ela decidiu parar de sofrer, e deu um novo significado à frase. Vanessa também preferia que ele, o filho, morresse, para que ela nascesse. E foi o que ela fez. Mas a lembrança de seu pai cuspindo essas palavras, com ódio, ela jamais vai esquecer. Com o tempo, Vanessa foi aprendendo a conviver com o ódio, com o escárnio, com o desprezo dos outros. Ao mesmo tempo, começou a perceber que despertava o desejo em alguns homens, às vezes os mesmos que a insultavam – como o vizinho casado, moralista e hipócrita que quis levá-la para a cama.

O Uber sobe a rua Augusta. Puteiros, saunas, clubes, bares, mesinhas na calçada. Executivos afrouxando a gravata, universitários, gays, intelectuais, pessoas trans. Pessoas de todo tipo, a fauna da cidade grande. Logo mais, pitboys passarão, em seus carros, frustrados, desavisados e burros, cuspindo ofensas. Mas ainda são nove horas da noite, nem todos estão tão bêbados; a ferveção está só no início, os babados só começarão mais tarde. 

Mas Vanessa não podia mudar, ela só podia ser quem ela era. Como não ser quem se é? Eu não posso ser quem eu não sou, ela dizia, nem sei como se faz isso. Mas o mundo não aceitava essa reposta, nem o seu pai, que a expulsou de casa. Ela foi morar com uma tia, em um bairro distante, e morria de saudade da mãe. Foi, voltou, nada mudou. Até que ele morreu, e ela voltou a morar com a mãe, e foi então que começou a transicionar, por volta dos 18 anos. Foram anos de tratamentos hormonais, injeções de silicone, sessões de depilação e cirurgias, até que ela se olhou no espelho e finalmente pôde dizer: essa sou eu, o espelho não mente mais. Mas ela continuou sendo rechaçada, olhada de cima para baixo. Aprendeu, amargamente, que era uma cidadã de segunda classe, uma pessoa indesejável. Teve alguns subempregos, que pagavam mal. Depois que sua mãe morreu, ela se viu sozinha no mundo, sem conseguir se manter. Ela não pôde mais pagar o aluguel da casa, pois o que ganhava como assistente num salão de beleza mal dava para o supermercado. Foi então que foi morar com uma amiga trans no centro da cidade e, incentivada por ela, passou a se dedicar a uma atividade bem mais rentável, apesar de perigosa. Ela sempre quis se sentir livre, ganhar o mundo, sair daquele bairro provinciano – mas o que ela encontrou foi bem diferente do que esperava. Ela encontrou um mundo hostil, mas sobreviveu, porque é isso que as pessoas fazem quando não resta uma alternativa melhor.

O Uber já deixou a região da Paulista e agora atravessa o Jardim Europa, enquanto Vanessa vê a cidade passar e se modificar, as luzes multicoloridas, o burburinho e os arranha-céus dando lugar a ruas desertas e elegantes, com suas mansões, seus clubes exclusivos, seus parques, seu dinheiro. A cidade é uma selva, e a noite é cheia de inquietações. Pode-se cortar a tensão no ar com uma navalha, mesmo quando há o silêncio, mesmo aqui. Ela sabe que por trás desses muros altos não há apenas famílias felizes e perfeitas, porque já enrabou muitos pais de família de classe alta, executivos cheios de grana, em meio a garrafas de uísque e carreiras de pó. Vanessa é capaz de farejar um hipócrita a quilômetros de distância, eles sempre cruzaram a sua vida, fazem parte dela. Ela é a depravada apedrejada em público e a deusa adorada dentro de quatro paredes, quando os homens se ajoelham diante dela e veneram o seu pau de 22 centímetros. E ela já viveu a noite, já quis sorver cada gota de cada prazer, beber todas as bebidas, experimentar todas as drogas, sentir tudo que um corpo pode sentir. Agora ela está um pouco cansada disso tudo – talvez porque esteja apaixonada. É isso que a paixão faz com você, ela conclui: todo o resto perde a graça. Pois tudo que ela queria fazer hoje não era ir mais uma vez para as ruas, para vender o corpo (vender o corpo não, vender fantasias), mas ficar em casa com Ricky, ver um filme, comer uma pizza, tomar uma cerveja, transar, dormir agarradinha a ele. Mas Ricky não está mais em sua vida, e ela mais uma vez encara a vida sozinha. Ele quer voltar, mas ela resiste. Ela ainda gosta dele, ainda o deseja, mas sabe que ele não mudará. Ninguém muda, afinal. As pessoas são o que são.

 

 

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