Leia um conto do livro "Veludo azul"

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RUBIÃO

 

     Rubião despachou os últimos documentos com a sua secretária. A funcionária, antiga de casa, recolheu as pastas e saiu sem dizer uma palavra sequer. O velho homem recostou-se na confortável cadeira reclinável de couro marrom cruzando as mãos sobre a barriga saliente. Os olhos, negros e apagados, fixaram-se num ponto qualquer da sala, desligando-se daquele mundo do qual já estava cansado. Olhou para os porta-retratos com as fotografias da esposa, dos filhos, netos e recém-nascido bisneto. Abriu a terceira gaveta do lado esquerdo de sua mesa e tirou uma caixa de charutos cubanos. Colocou a caixa sobre a mesa, abriu-a como se tivesse abrindo um baú do tesouro. Tirou um charuto e aspirou o seu aroma. Deliciou-se como uma criança se delicia com um doce ou algo parecido. Um sorriso de satisfação escapou de seus lábios; levou o charuto à boca, mas não acendeu-o. Recostou-se novamente em sua cadeira, e fixou novamente seus olhos para um ponto qualquer da sala, abandonando-se em seus pensamentos. 
     A porta de sua sala abriu-se lentamente e a secretária perguntou-lhe se desejava alguma coisa mais. Rubião respondeu que não e a dispensou. Aliás já era tarde, já passava das oito horas da noite. Tudo ficou em silêncio. 
     Fez uma ligação. 
     “Pode vir, ela já se foi. Sim, não tem ninguém. Está tudo tranquilo.” 
     Desligou o telefone. Levantou-se, caminhou até um velho e pesado armário escuro, abriu uma das portas e tirou uma garrafa de conhaque. Serviu-se de uma dose e tomou um gole. Por fim acendeu o charuto e ficou parado no meio da sala, absorto em seus pensamentos. A sala era grande, com móveis antigos e pesados, escuros, austeros, como fora toda sua vida. 
     O charuto queimava entre os dedos e uma longa cinza estava prestes a cair. Retornou para sua mesa, depositou a cinza num cinzeiro de cristal. Sentou-se. Olhou para o relógio. Nove horas. “Está quase chegando”, balbuciou, quebrando o silêncio existente naquela sala. 
     A porta se abriu vagarosamente. Os pequenos e negros olhos de Rubião se apertaram para ver quem chegava e viu apenas uma silhueta na contraluz. 
     “Pensei que não viesse”, disse Rubião aos seu interlocutor. “Sente-se, por favor. Aceita uma bebida? Charutos? São cubanos.”
     O homem alto, de cabelos grisalhos, trajando um terno escuro muito bem cortado, puxou uma cadeira e sentou-se diante de Rubião. Ambos se olharam em silêncio.
     “Está assustado?”, perguntou o interlocutor.
     Rubião soltou uma baforada de seu charuto.
     “Um pouco.”
     “Isso é normal”, respondeu o outro, com uma voz tranquila.
     “Deve ser. Não sei, nunca passei por isso.”
     “Entendo. As pessoas nunca estão preparadas.”
     “Não. É difícil.”
     Ficaram em silêncio.
     Rubião apagou o charuto e em seguida guardou a caixa de charutos na terceira gaveta.
     Silêncio. O homem de cabelos grisalhos, o interlocutor de Rubião, aparentava calma. Seus olhos verdes eram tranquilos e seu rosto longo transmitia bondade. 
     “Quando vai ser?”, perguntou Rubião.
     “Quando você quiser.” 
     “Prefiro que seja de surpresa.”
     “Compreendo.”
     “Admiro a sua frieza.” 
     “Anos de trabalho me moldaram. Muita disciplina, meditação. A mente precisa estar em ordem, equilibrada. Não podemos deixar a emoção sobressair sobre a razão.”
     “Gostaria de ser assim”, disse Rubião, com o olhar distante.
     O outro não disse nada.
     “Estou com um gosto ruim na boca. Um amargor, uma coisa estranha”, disse Rubião depois de algum tempo.
     “É o medo.”
     “Talvez.”
     “Ainda dá tempo de mudar. Deseja fazer isso?”
     Rubião hesitou um pouco. Olhou diretamente nos olhos de seu interlocutor.
     “Posso?”
     “Sim.”
     Rubião abriu um sorriso de lado. Soltou o ar lentamente.
     “Não, não quero. Vou até o fim. Já está decidido.” 
     “Muitos se arrependem e desistem na última hora, e depois se arrependem da desistência, mas aí já é tarde demais. Uma vez que desistiu não pode requerer os nossos serviços novamente. São as regras do jogo.”
     “Regras bem estabelecidas, não é mesmo?”
     “Sim. É a chave de nosso negócio.”
     “É... Como todo bom negócio, as regras devem ser precisas.”
     Silêncio.
     Rubião parecia nervoso, mordia o canto inferior do lábio. Suas mãos, gordas e manchadas pela senilidade, tremiam levemente. Um filete de suor escorreu-lhe pela fronte.
     “Está uma linda noite”, disse, depois de algum tempo.
     “Quente, eu diria.”
     “Sim.”
     Silêncio.
     O outro homem olhava diretamente para Rubião. Era um olhar frio, sem qualquer tipo de sentimento, de compaixão. Tentava descobrir o que se passava na cabeça daquele homem que estava à sua frente, como sempre tentara descobrir o que se passava nas mentes de seus clientes. Nunca descobrira. Só tinha um certeza: todos sentiam medo. Um profundo medo.
     Rubião apanhou um retrato com a família toda reunida. Olhou a fotografia com carinho e a estendeu para o homem à sua frente.
     “Bonita”, disse o homem, friamente.
     “Graças Deus, estão todos bem. Criei uma família feliz. Vê, tenho até um bisneto. Quem diria. Nunca pensei que chegasse a ver o meu bisneto. E estou aqui, babando pelo garoto. Tem família?” 
     O outro não respondeu.
     “Acredito que sim. Creio que deva ter uma belíssima família como a minha. Posso lhe fazer uma pergunta?”
     “Já fez.”
     Rubião abriu um sorriso amarelo.
     “Crê em Deus?”
     “Acredito numa Força que move a humanidade. Não sei se posso chamá-lo de Deus ou qualquer outro nome. É algo em que acredito desde que era criança.” 
     “Vou à missa todos os domingos. Eu e minha esposa. Meus filhos não vão. O que importa, não é mesmo? Faço a minha parte.” 
     Silêncio.
     “Estou velho, cansado, doente. A vida perdeu todo e qualquer significado para mim. Talvez devesse pensar de outra forma, mas não quero ficar entrevado numa cama e dar trabalho para os outros, depender dos outros. Não... eu não suportaria tamanha humilhação. Acha que devo rezar? É permitido?”
     O outro homem ergueu os ombros. 
     “Bom”, disse Rubião, com um alívio.
     “Quer que eu saia?”
     “Por favor, fique.” 
     Rubião fechou os olhos. Seus lábios movimentavam-se levemente. Repentinamente abriu os olhos assustados. Uma arma estava apontada para sua cabeça.
     “Escolheu um belo momento.”
     “Quando eu quisesse, você disse.”
     “Sim.”
     “Então?”
     “Como queira.”
     Ouviu-se um estampido. Rubião caiu para trás. Uma bala entre os olhos. O outro homem olhou para o corpo jogado, guardou a arma na cintura, ajeitou a cabeleira grisalha e desceu de elevador os dezesseis andares e em seguida desapareceu no meio da multidão.

 

 

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