Leia um conto do livro "Travessia marítima"

Leia um conto do livro "Travessia marítima"

Simetria

Marcelo Nunes

 

      Ele não lembra exatamente de como aconteceu. Lembra que estava discutindo com Roberta, na volta da casa da praia, e estava chovendo. Não era uma discussão acalorada, como havia acontecido tantas vezes; era apenas uma conversa mais tensa, mas suficiente para irritá-lo, fazendo com que ele corresse mais. O fato é que, a partir de certo momento, ele só lembra do barulho do carro derrapando, e mais nada. Acordou só no dia seguinte, cheio de hematomas, cortes, um braço e um fêmur quebrados. Ninguém quis lhe dizer o que havia acontecido exatamente, a princípio; apenas repetiam: “Você sofreu um acidente”. Ele perguntava por Roberta, chegou a gritar, chamando por ela, mas logo o acudiam e injetavam algo em seu braço. Demorou até ele ser informado de que ela havia morrido, que ele havia perdido o controle do carro em uma curva, que havia invadido a pista contrária e se chocado com outro carro. Além de Roberta, o motorista do outro veículo também havia morrido. A noiva dele havia sobrevivido, em estado gravíssimo, e corria risco de vida.

      Agora ele está em casa, reaprendendo a fazer as tarefas diárias com uma mão só (o outro braço, o engessado, ainda está dolorido e sem força); e reaprendendo a viver sem Roberta ao lado. Além da visita diária de um fisioterapeuta, tem a ajuda de duas enfermeiras, que se revezam, cobrindo as 24 horas do dia, pois ele ainda se sente fraco, principalmente quando precisa subir ou descer as escadas. A casa, enorme, agora parece excessiva: o caminho da suíte do casal, no primeiro andar, à cozinha, no térreo, que era vencido rapidamente e sem esforço, agora é cansativo e doloroso. A perna esquerda ganhou um pino, e embora a sua recuperação esteja sendo excelente, segundo o fisioterapeuta, ele precisa vencer um degrau por vez, de forma lenta e cuidadosa, agarrando-se ao corrimão que antes ignorava.

      Afastou-se da direção da empresa; agora se limita a um telefonema ou outro, e a assinar papéis. Já não se interessa por seu rumo, até porque ela é uma engrenagem volumosa que se movimenta sozinha. Além disso, possui um vice-diretor eficiente em quem confia totalmente. Seria a situação perfeita para quem deseja apenas aproveitar a vida com conforto, sem se preocupar com dinheiro; para ele, no entanto, viver tornou-se uma angústia constante, um andar numa corda esticada sobre um precipício. Se sua vida antes do acidente era perfeita, agora tudo se esfacelou; o equilíbrio das coisas, ele sente, é frágil.

      Ele pede que sua secretária descubra onde a moça sobrevivente está internada. Descobre que ela é pobre, que não tem plano de saúde, e que seus pais são falecidos. Ela está na UTI de um hospital público. Sofreu fraturas múltiplas, perdeu uma perna e teve um pulmão perfurado, além do abalo psicológico: ela chora constantemente, recusa-se a falar, e quando o faz, limita-se a perguntar pelo noivo falecido. Após alguns dias, ele diz à secretária que deseja conversar com a moça, e ela o leva ao hospital. Ele entra sozinho no quarto, e a observa na cama. Ela está dopada e tem um acesso no braço para o soro, e o seu corpo magro e moreno é assimétrico: a perna esquerda está aumentada pelo gesso, que vai do topo da coxa ao pé; a direita é apenas um espaço vazio sob o lençol. O seu cabelo foi raspado, e uma enorme cicatriz sai da bochecha, sobe pela têmpora esquerda e termina no topo da cabeça. Ele se aproxima e encosta a cabeça no peito dela, sente uma tênue pulsação, e toma a sua mão esquelética e inerte. Levanta levemente o lençol, e vê que ela está nua. Os pelos pubianos, grossos, sobem do ponto em que se fecham lábios escuros e finos e avançam para os lados, para o começo das coxas (uma delas, na verdade, um coto). Ele volta a cobri-la e se afasta. Admira a moça durante mais alguns minutos, antes de ir embora.

      Ele passa a visitar a moça quase todos os dias. Fica horas no corredor, esperando que os médicos terminem todos os procedimentos, e depois se senta diante dela, que quase sempre está dopada ou adormecida. Quando ela está acordada, ela o ignora e não diz uma palavra. Ele então volta a se sentar, ou dá uma volta no corredor. À noite, vai à lanchonete do hospital, come um sanduíche, toma um café, e depois sai à rua para fumar um cigarro – hábito que retomou após 15 anos.

      Os dias passam, e ele recupera o movimento quase completo da perna, que parou de doer. Ele tem 42 anos, mas sempre praticou esportes, é saudável e tem uma boa musculatura. Após oito semanas do acidente, ele finalmente retira o gesso do braço. Ele ainda sente dor ao fazer certos movimentos, mas o fisioterapeuta lhe garante que ela passará com o tempo.       

      A moça não tem parentes na cidade, e a família do noivo não se interessa por ela – talvez não queiram a responsabilidade ou o custo de cuidar dela. Quando, semanas depois, ela tem alta, uma tia do interior vem assinar a papelada. Ele dá à tia uma boa quantia em dinheiro, e leva a moça para a sua casa, com a promessa de cuidar dela. No dia em que a moça chega, ele manda sua empregada comprar flores e dispô-las pela casa. A enfermeira a leva, de cadeira de rodas, até a piscina. A moça não diz uma palavra, parece ainda estar catatônica. Ela o ignora; sempre que ele se aproxima, seus olhos se desviam dele e fitam o vazio. Logo ele decide mandar fazer uma prótese para ela. Após conversar com especialistas, opta por uma perna biônica que custa uma pequena fortuna. A princípio, ela se recusa e levantar da cadeira de rodas e tentar caminhar, mas pouco a pouco o fisioterapeuta e a enfermeira a convencem a dar os primeiros passos.

      Quase todas as tardes ele observa a moça em sua cadeira de rodas, no meio da enorme sala, a olhar para o infinito, absorta em sabe-se lá o quê, e vê a luz atravessando as grandes janelas de vidro e sendo refratada em espectros luminosos que parecem dançar sobre todas as superfícies. Às vezes ela caminha do seu quarto para o banheiro do térreo, ou dele para a piscina, a perna que foi fraturada, agora sem o gesso, ainda titubeante, a perna biônica dobrando-se à altura do joelho por um complexo sistema de molas e amortecedores envolto em titânio, alumínio anodizado e aço inoxidável, uma exótica mulher-robô, o olhar fixo no ponto de chegada, alheia a todo o resto. Ela jamais fala, e ele também está aprendendo a não falar. Aos poucos uma rotina se estabelece, e nasce nele a esperança de as coisas recuperem o seu equilíbrio.

      À noite, ele vai ao quarto da moça para vê-la dormindo, dopada de tanta medicação. Ele por vezes levanta o lençol, pega a perna mecânica e a coloca, cuidadosamente, sob o coto. Ele então se senta em uma poltrona diante da cama e a observa. Vez ou outra, durante a noite, vai à piscina e fuma um cigarro, enquanto a observa, adormecida, através das portas de vidro.

      Certo dia, ao trabalhar em seu computador no andar superior, sente uma presença atrás de si. Ele se vira e vê a moça o observando, à porta. É a primeira vez que seus olhos se encontram.

      “Roberta?”, ele pergunta. Ela não responde; apenas se afasta e some pelo corredor. Ele se levanta a tempo de vê-la descendo a escada, os passos agora mais firmes, perfeitamente adaptada à prótese. Seus olhos não se encontram novamente.

      As semanas se arrastam; é pleno verão, e o ar abafado invade a casa, onde ele e ela passam a maior parte do dia deitados, sonolentos. Ele está vivo, ela também, e ele se pergunta o porquê. Por que um casal se foi, e outro ficou? E por que ele, o culpado de tudo, sobreviveu? Por vezes ele caminha pela casa vendo todos os sinais que Roberta deixou: os quadros que ela pintou, os móveis que ela escolheu, os pequenos detalhes que ela espalhou pelos cômodos, os porta-retratos onde eles sorriem para a câmera, naqueles momentos felizes que haviam se tornado tão raros. Ele então vê a moça biônica, sua figura magra e morena, o cabelo que agora volta a crescer, a enorme cicatriz que adorna o seu rosto como um pingente avermelhado. Seria ela e Roberta a mesma pessoa? Por que ela não lhe dirige a palavra? Por que ela parece alheia a ele? Mas a sua presença silente sempre cruza o seu caminho, está sempre ali, na sala de estar, na sala de jantar, na piscina, na cozinha. Ele sente que é hora de terminar o que começou, de dar o passo seguinte.

      Não é difícil fazer com que a moça durma eternamente. Ele vai ao seu quarto, no meio da noite, segura o travesseiro contra o seu rosto, exercendo força, enquanto ela se debate durante alguns segundos, até que o seu corpo frágil se torna imóvel. Ele então a despe, encaixa a perna mecânica sob o coto, despe-se também, toma todo o conteúdo do frasco que trouxe consigo, deita ao seu lado e fecha os olhos. Durante um momento, sente que o mundo retomou o seu equilíbrio, que os pares novamente se encontraram, que a simetria foi restabelecida, e então, lentamente, desliza para o sono mais profundo.

 

 

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