Leia um conto do livro "Fratura"
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Insônia
Por que sou o que sou? Essa pergunta o fez perder toda a noite. Sentia um desconforto no peito. E como que para tentar suportar essa lancinante noite, ele passou para o outro lado da cama. Revirou-se, contestou-se por diversas vezes, mas parecia que seu corpo estava decidido a não lhe dar atenção. A não fazê-lo pregar os olhos. Algumas ideias passaram por sua cabeça; primeiro que já não reconhecia a vida que levava, o emprego em que estava, a namorada que dizia amar, os amigos que ele odiava. Mas, com certo requinte, com alguma elegância que ele julgava ter, vivia dia após dia nutrindo as relações e vivendo outra vida, não necessariamente a vida que ele queira, mas a que, ainda assim, ele havia escolhido em algum momento. Um calafrio lhe subiu pelo corpo, ele pensava ouvir uma voz, uma voz fraca que vinha de baixo de sua cama. Uma voz aguda, uma voz feminina. Pensou ser, a voz que agora o chamava pelo nome, a mesma voz da mulher por quem se perdera de paixão alguns anos antes. Uma que conheceu numa noite gelada de sexta-feira. E a mesma que ele abandonou duas noites depois, pois escolher bem nunca foi seu forte. Ele escolhia mal, ele escolheu mal. Ele vive mal. Porque pensa ter que se punir por ser exatamente o observador de sua própria vida. Inércia. Essa palavra martela em sua cabeça. Ele é um inerte em sua própria novela, a novela de sua vida que passa tão rápido que ele já não se recorda de quase nada do que viveu. Se viveu. Se pensou.
O quão refinada pode ser a violência? Ele se pergunta enquanto a voz ecoa a mesma pergunta obscura. De certa forma, fazendo-o empalidecer. Tremor. Ele sentia. Deixou de sentir, levantou-se, sentou-se na beirada da cama, colocando as duas palmas das mãos na testa, e lastimava alguma coisa, ele se imaginava fora dali, dentro de outro quarto, com alguma companhia. A namorada dormia no apartamento dos pais, ela ainda tinha dezessete anos e não poderia dividir o mesmo quarto que ele sem que os pais estivessem a postos. Ele tem vinte e cinco, mas não ama a namorada, não a queria de companhia na cama com ele, queria a dona da voz, a suposta dona, o reflexo de uma antiga paixão de três noites. Que ele nunca mais viu. Por quem ele nunca mais perguntou, mesmo que nunca houvesse para quem perguntar, mesmo que ele fosse o único em seu círculo social que algum dia já vira seu rosto, já beijara sua boca...
Agora a voz o chama com mais veemência, já não quer mais pensar na violência, quer que a ele a encontre, quer que ele a possua, ali mesmo no chão do quarto dele, ali mesmo naquele escuro solitário. E ele se enfurece por dentro, se enerva, o pinto cresce e ele se joga no chão, olha debaixo de cama, chama por um nome:
— Joana.
A voz diz que sim, implora para que ele a encontre, para que ele a penetre. Para que ele tome as rédeas de sua vida. Ele enfia a cabeça debaixo da cama, logo todo o corpo. Ele agora está por inteiro debaixo da cama, lambendo o chão sujo de poeira, num escuro ainda mais escuro que o do quarto, pois esse escuro advém da voz. E quanto mais escura parece ficar sua visão, mais sensual a voz parece ser. Monopolizando sua atenção.
Por um instante teve uma epifania. Um pensamento, algo que lhe escapou pelas mãos. Uma certeza do que tinha que fazer, até mesmo como fazer, como proceder diante de tudo, de um tudo que sempre fora demais para ele, que o acorrentou a curta vida numa descida sem precedentes para o buraco, para o fosso aterrador em que ele hoje está, não este gelado, colado ao chão. Mas um que ele se vê quando acorda, no primeiro piscar de olhos, quando mergulha a cabeça na banheira cheia, quando seca o corpo e se vendo no espelho embaçado se imagina um outro homem, com 10 centímetros a mais de altura, com uma barba mais grossa, com músculos saltados, com um porte e uma postura mais desenvoltos. Um outro que diante dele seria quase um super-homem, com suas virtudes esfregando cada vício e defeito do patético homem que se imagina diferente, metamorfoseando-se num banheiro vazio. Em meio a uma neblina artificial e a uma vaga ideia, também artificial, de como se queria ser, de uma certeza que expõe suas fraquezas mais profundas, uma não aceitação da realidade.
Desse primeiro até o último momento do seu dia. Por todos os dias.
Ele disca o número de sua namorada. Ela não atende. Ele deixa uma mensagem de sms dizendo que está tudo acabado. Que ela não o procure, pois ele precisa de espaço para descobrir quem é. O que quer. E a certeza que há pouco parecia irrevogável se fragiliza. Mas dura pouco. Ele disca o número de uma puta que ele conheceu anos antes, marca um encontro casual no seu carro, na esquina da casa onde ela trabalha. Paga o dobro, pois ela já estava para encerrar o dia, e ele insiste que se não comê-la poderá se matar. Ela assente, confirma os trinta minutos que ele suplica. Não por valorizar sua vida, mas pelo dobro do dinheiro que ele pagaria.
Agora ele já está de novo sobre a cama, disca mais um número. Mas não aperta o ícone da ligação. Hesita. Levanta e veste uma camisa preta abotoada até o peito liso. Escova os dentes e toma um gole de cachaça do seu minibar. A puta o espera do outro lado da cidade, a vida o espera desde que ele nasceu, e ele como se nunca tivesse antes se enganado dessa forma. Tranca a porta de casa [falta um verbo aqui] direto a seu destino.
Mas não sem antes se despedir da voz de sua paixão. O reflexo de si mesmo. A saudade de alguém que ele só sabe o nome e uma quase apagada lembrança do gosto.
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