Leia um conto do livro "A felicidade é um inferno"

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O trem das estepes

De uma viagem que iriam fazer entre a capital da Rússia e a capital da China, pela Ferrovia Transiberiana, um dos maiores e impensáveis trajetos da Terra – era disso que falavam quando a aeronave prefixo PP-CJE cruzava o Atlântico. Ela se dizia excitada com a possibilidade de conhecer, de trem, regiões remotas e congeladas, igrejas ortodoxas e povos orientais, e apertava de leve a mão dele. Ele sacolejou o copo de uísque e tomou um gole, encaixando seus olhos aventureiros nos dela. A viagem seria longa, ele dizia; exaustiva, talvez, mas compensada pela variedade de paisagens e povos que veriam. Ela se sentiu à vontade, passou as mãos pelos cabelos, e, enviesando os olhos, lembrou-lhe o roteiro a Moscou, a visita ao Kremlim, a excursão para Kolomenskoye, antiga residência de verão dos czares russos, e a Rostov. Perguntou se ele sabia que Rostov era famosa pelos sinos das igrejas, que podiam ser ouvidos a uma distância de 20 quilômetros. Ele sabia? Rostov?! Ela suspirou fundo, esticou as pernas e entrefechou os olhos, nervos e músculos retraídos de ansiedade e excitação. Quase no limite de suas forças. Além do mais, logo que aterrissassem em Paris, tomariam outro voo para Moscou e lá queria chegar inteira. Com os olhos também semicerrados, vagamente, ele entendia o roteiro, pensando na felicidade de conhecer lugares inexplorados. Mesmo reduzidos à quase condição de semiconsciência, perceberam claramente o instante em que o avião deu um estrondo fora do comum, seguido de um espaço vazio. Depois, novamente, um ronco contínuo e áspero sacolejou toda a fuselagem. Ela abriu os olhos de supetão, as feições desconcertadas, o coração feito castanholas. O que seria aquilo, por Deus? Com os olhos muito abertos, ele atrapalhou-se todo, para finalmente explicar que devia ser coisa normal de avião daquele porte, naquelas alturas, e olhou diretamente para a aeromoça, que o cumprimentara com um sorriso-dentifrício quando ele entrara na aeronave. Não soube identificar com nitidez, mas pareceu-lhe que ela tinha empalidecido ao redor da boca e que olhava fixamente para frente. Bobagem. Desviou a visão da moça e avançou com os olhos muito nus para os passageiros do lado. Também eles pareciam sentir vaga angina, coisa assim. Apertou a mão dela, azulando as veias do braço, e ficou brincando de estalar as juntas dos dedos, quando o avião deu mais um ronco surdo, seguido de um vazio, insuportavelmente, longo; parecia até não querer respirar de novo. Mesmo submetido àquela experiência que não era fácil de classificar e rindo de nervosismo, ele perguntou se ela confirmara que o visto da Mongólia seria providenciado em Moscou. Com os olhos boiando em lágrimas, ela recobrou a dignidade e respirou o ar rarefeito da aeronave com um gosto difícil na boca. Meu amor, ela falou entrecortado, contraindo os olhos de susto, ao perceber que o ruído cessara um pouco e recrudescera com mais sanha do que antes. Esperando limpar da mente a horrível impressão que aquilo lhe causara, ele ficou gastando os momentos não sentindo nada, o que era muito numa ocasião como aquela. Como os passageiros pareciam por demais intranquilos, o comandante anunciou alguma coisa, mas nem ele nem ela tinham entendido perfeitamente. Por medida preventiva de segurança, a aeronave faria um pouso em Tenerife. Em 15 minutos e sete segundos, voando a 7 mil pés, a uma velocidade de 855 km horários, pousariam no aeroporto Tenerife Sur; o tempo em Santa Cruz de Tenerife estava encoberto, 12° centígrados, sensação térmica de 15° centígrados, visibilidade ilimitada, umidade 82%, ventos fracos a noroeste; que mantivessem os cintos afivelados e seguissem recomendações de segurança. Com um vácuo no estômago, ele disse que um de seus maiores desejos era conhecer o Lago Baikal, o mais profundo do mundo, responsável por 20% da água doce do planeta. Que tinha vontade de experimentar a água do lago, que, de tão pura, permitia que o engarrafamento fosse feito de uma maneira rústica: a garrafa era mergulhada no lago, retirada e tampada. Ela continuou muda, entretanto, não se ocupou do silêncio, pois ouviu um estrondo, dessa vez, extraordinário. Meu amor, ela gritou para dentro, segurando as mãos dele, como quem avançasse no escuro agarrado às paredes. E o mundo lhe pareceu cheio de coisas secretas que jamais lhe seriam reveladas. Meu amor, ele respondeu, percebendo que gotas de suor brotavam por entre os cabelos e escorriam pela nuca, geladas. Beijando-a na testa, também molhada, recomendou-lhe que ficasse calma, por Deus! E certo de que estava cometendo uma tolice, explicou que a segurança no céu começava na terra; que a manutenção de uma aeronave era tão minuciosamente controlada que todas as peças possuíam um histórico, com o número de horas voadas e código correspondente. Mesmo que do centro de seu corpo não viesse nenhuma ideia que pudesse justificar aquele estrondo, ela garantiu que então confiava nele, consciente de que nada mais poderia fazer e que estava no momento pensando nos Montes Urais, a divisa natural entre a Europa e Ásia. Quando chegasse a vez, que ele ficasse atento, já que não era fácil notar essas montanhas suaves. Ele fez uma cara decepcionada: podia jurar que os Montes Urais eram altíssimos. No entanto, não gastou muito tempo pensando nisso, pois um estrugido agudo e dissonante invadiu novamente a aeronave, e o coração apertou-lhe com força descomunal. Quando as luzes se apagaram e a voz do comandante pedia calma, muita calma, e ela só ouvia o choro baixo e contínuo da moça do lado, ficou pensando no choro do escritor Fiodór Dostoiévski, na cidade de Omsk – lugar que ela também visitaria –, durante os quatro anos em que ele passou exilado e torturado, por ter salvado um prisioneiro de afogamento e por ter reclamado da sujeira da sopa. Sentindo vertigem como nunca tinha sentido, ele então passou as mãos sobre os ombros dela, aconchegando-a ao peito, como se tivesse decidido que aquele era um instante que jamais poderia ser esquecido. Indagou se ela se lembrava de que o trem cruzava a fronteira entre a Mongólia e China de madrugada; que era preciso ficar acordado para acompanhar a inusitada troca de rodas. Como os trilhos russos eram mais largos que os chineses, um macaco hidráulico levantava vagão por vagão e, manualmente, as rodas eram substituídas. Ela arregalou mais os olhos, abriu a boca, sem saber o que responder, que coisa espantosa, disse, escutando um ruído diferente dos anteriores, que se espalhava com rapidez por toda a aeronave, como se a fuselagem estivesse se dividindo em partes. Ele, tomado por entorpecimento estúpido, pensando que tinha levado um soco no estômago, contraiu-se todo. Ela ergueu os olhos e percebeu que as coisas se aproximavam ou se afastavam de si absurdamente. Apalpou a testa, os braços, olhando fixamente para o mesmo ponto. Então, esquivando-se do pesadelo que se alastrava pela aeronave, disse de maneira quase inaudível – e ele teve que apurar os ouvidos para ouvir: quando chegassem a Pequim o trem das estepes teria percorrido 7.864 quilômetros e, finalmente, eles conheceriam o mausoléu de Mao Tsé-Tung e a Praça da Paz Celestial. 

 

 

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