Sobre o livro:
Segundo o Dicionário Houaiss, "caipora" ou "caapora" (do tupi kaa'pora) é uma entidade fantástica associada às matas e florestas e aos animais de caça, dela se dizendo que aterroriza as pessoas e é capaz de trazer má sorte e mesmo causar a morte.
O romance Kaapora narra a saga de uma família ribeirinha do Marajó, imersa num turbilhão de violência que se esconde no interior da quietude tropical. Uma teia de circunstâncias extremas vai unir as histórias de Izomar, Valdeci, Vânia, Josefa e Carvalho, revelando uma série de mazelas envolvendo sangue, abuso, política e indiferença no seio da Amazônia Marajoara.
Uma narrativa vigorosa e impactante, uma grande estreia de um jovem autor paraense.
O se disse sobre o livro:
Escrever literatura no Marajó é uma aventura, digo mais, um ato de coragem, no entanto, necessário, pois a literatura se apresenta como algo crucial e decisivo na vida das pessoas. A literatura, como afirma Antonio Candido, é mais uma de nossas “necessidades básicas e universais”, é “uma realidade tão política e humanitária quanto a dos direitos humanos”. Foi nessa proposição que aceitei o desafio de me deixar humanizar pela escrita pulsante de Leandro Gonçalves, jovem professor de literatura que tive a oportunidade de conhecer ainda no curso de letras da Universidade Federal do Pará, Campus do Marajó-Breves. Desde o início, Leandro Gonçalves me surpreendeu com o seu amplo repertório de leitura, diga-se de passagem, o seu gosto pelo gênero fantástico, destacando-se entre os alunos da turma com um dos melhores trabalhos de conclusão de curso, que tive a honra de compor a banca examinadora em 2022, cujo tema é igualmente peculiar – Literatura e cinema: um estudo sobre o fantástico em O Exorcista, de William Friedkin.
Assim, após cumprirem as suas metas, alguns alunos e alunas percorrem caminhos vários, o de Leandro foi decisivo: escolher a literatura como ofício para se lançar na cena literária do Arquipélago do Marajó, especialmente em Breves, uma quase metrópole ribeirinha na Amazônia. Nesse cenário, a literatura encontra um terreno fértil e promissor com a recente criação da Academia Brevense de Letras (ABL), momento histórico em que a cidade de Breves passa por grandes transformações no âmbito de sua fisionomia urbana, e assiste uma Nova Breves nascer num ritmo frenético.
Nesse contexto, a ficção de Leandro Gonçalves desponta com o seu Kaapora. Talvez, como resquícios de uma memória ancestral das matas que sobrevive em meio as transformações urbanas, ou um ancestral sempre a espreitar o homem amazônico em sua constituição originária e mítica. A propósito, o título do livro faz jus ao “Marajó das florestas”, termo cunhado pelo pesquisador marajoara, Agenor Sarraf. Na língua originária, “Kaapora” é uma mata bonita, Ka’a porã, associado aos povos originários das matas, difundido na mitologia indígena como a figura do Caipora. A entidade pertence ao imaginário das matas, juntamente com outros seres, daí a associação, muitas vezes, estereotipada do caipira, que está à margem do universo urbano; daí a associação dos termos caipira e caipora.
Justamente tudo isso num momento crucial de viradas de paradigmas e de uma nova consciência ambiental e insurgente; de um “futuro ancestral”, como adverte Ailton Krenak, e que nos convida a repensar os nossos modos de viver. O Kaapora/Caipora enquanto síntese e elemento de mesclas foge aos padrões normativos e eurocêntricos, pois nos convida a refletir sobre o centro de outras margens, ou a margem de outros centros, virada de paradigmas, novamente, que é sair de um lugar comum e confortante, para enxergar uma nova realidade. Ficcionalmente, este Kaapora que nos chega é um chamado íntimo sobre a mazela e a precariedade de vidas de homens, mulheres e crianças que vivem no Marajó, nos rios e furos de difícil acesso, até mesmo por navegadores mais experientes dos furos e dos rios.
Em Kaapora, a paisagem e o espaço marajoara predominam, mas transcendem os limites geográficos, já que alguns personagens avançam e se deslocam até os limites do transnacional (Caiena e Suriname). Nesse espaço, o tráfico de combustível e de pessoas também movimentam a economia da região; crimes e prostituição de mulheres são denunciados, em alguns casos, a vulnerabilidade social, a violência, a crueza, a pobreza, e a precariedade da infância e da exploração infantil, que são flagrados pelas lentes precisas do autor brevense. Nem mesmo a utopia do garimpo e a “corrida do ouro” deixam de ser sondadas. A vida extrema nesse espaço não escapa do olhar atento do narrador, ao passo que a denúncia dos desmandos do poderio político no Marajó assume a veia central dos conflitos do romance.
Além disso, o universo das navegações é descrito de maneira realista, beirando um olhar cinematográfico. Por aí transitam os vendedores de açaí, palmito e frutos da região, que favorecem as transações de mercadorias dentro das navegações; algumas transações ilícitas, como, por exemplo, a disputa de óleo diesel, que também serve de moeda de troca para angariar votos e eleger uma grande massa de políticos da região. Não por acaso, o estilo do livro se aproxima dos traços literários de Edyr Augusto, escritor paraense, e há um diálogo intertextual em muitas passagens, que nos remete à trama de dois livros basilares desse último autor, Casa de Caba e Pssica.
As personagens de Kaapora, alguns mais notabilizados por seus vulgos (Valdeci/Catita, Izomar/Diabo do Rio, Mucuim, entre outros); e as mulheres (Josefa e Vania) vivem situações extremas: a mãe por ter de arcar com a solidão e a criação dos filhos entregue a um trágico destino, e uma vida de extrema fome e pobreza nos rios do Marajó, depois da morte de Izomar: “A vida é seca no rio Jacarezinho”, escreve o narrador. E a menina Vania que ainda menor é levada ao trabalho infantil dentro das embarcações, juntamente com o seu irmão mais velho, culminando no rapto de Vania por parte de uma rede clandestina de exploração sexual no Marajó.
Nesse universo, o mitologismo amazônico é sutil e alguns mitos se entremeiam aos discursos, alguns falares e variantes linguísticas típicas das personagens, como na passagem: “[...] quando os filhos dos comparsas apareciam, sempre pensava ser um deles, bastardo do marido. Filho de boto”, “Ela que sempre esteve ali, como uma boiuna espreitando a comida na água baixa”.
Que os leitores não esperem por redenção ao final do livro, pois não há. As personagens cumprem as suas funções e seus destinos fatais; alguns são ceifados em decorrência da vida de violência e crimes que cometeram; outros não contam com um destino preciso, e o leitor pode supor, nessa abertura livre de fruição do texto ficcional predomina uma sensação de desassossego e abjeção diante do efeito impactante do livro Kaapora.
Se para Antonio Candido, a literatura tem essa capacidade de libertar o leitor do caos e humanizá-lo, sem sombra de dúvida, o Kaapora cumpre essa função.
Danieli dos Santos Pimentel, UFPA-Breves