Entrevista com o escritor argentino Jorge Andrade

Entrevista com o escritor argentino Jorge Andrade

A Editora Nauta prepara a reedição do romance Os olhos do diabo (Los ojos del diablo), vencedor do Prêmio Benito Pérez Galdós 1986, na Espanha. O livro será publicado através de uma campanha de financiamento coletivo no Catarse. Nós conversamos com o autor argentino.

 

No momento em que Os olhos do diabo recebeu o prêmio Benito Pérez Galdós, em 1986, você morava na Espanha havia dez anos. O que o levou a sair da Argentina? E o que o levou a voltar a morar em Buenos Aires, após tantos anos?

Saí da Argentina por razões ideológicas. Eu não era um militante, mas tinha ideias claras: era impossível se opor explicitamente ao regime fascista, cívico-militar-eclesiástico, entreguista, a serviço da potência hegemônica daqueles tempos – hoje em lenta decadência – mas, para mim, era impossível permanecer em silêncio. Entendi que minha única saída era o autoexílio.

Embora a partida tenha sido dolorosa, também me trouxe um importante alívio psicológico. Tomar a decisão de voltar à Argentina depois de trinta anos de exílio – e quando a frágil democracia restaurada já tinha vinte e três anos de existência – foi muito mais difícil. As decisões importantes nunca são absolutamente puras. Tentamos agir com racionalidade, mas as emoções turvam o quadro. Por um lado, em 2006, eu sentia que minha experiência europeia estava esgotada, que a Europa já não tinha nada de novo a me oferecer. Podia continuar vivendo lá rotineiramente, mas, como por outro lado, havia razões familiares que constantemente reclamavam minha presença em Buenos Aires, optei, com um nó na garganta e com o grau de incerteza que acompanha todos os grandes passos que damos na vida, pelo retorno.

 

Qual foi a gênese do romance Os olhos do diabo? De onde surgiu a ideia?

De Diário de um Sedutor, de Søren Kierkegaard. Quis contar a história de um sedutor (minha novela tem como subtítulo “Uma Sedução”) que só consuma a sedução no desfecho da história, como no Diário de Kierkegaard. O desfecho da sedução, com todas as suas consequências, é descrito pelo dinamarquês de forma absolutamente alusiva, sem dizer uma palavra sobre o ato físico que isso implica. Isso não poderia ser de outra forma no seu caso, porque a descrição realista teria sido considerada obscena pela sociedade e, inclusive, pelas autoridades de sua época, quando o Diário foi publicado, em 1843. Quase um século e meio depois, na literatura prevalecia o realismo mais cru em matéria de descrição de relações sexuais; no entanto, eu adotei a mesma solução que Kierkegaard: o ato que consuma a sedução não é descrito em Os Olhos do Diabo, apenas se alude a ele através do relato da viagem do sedutor em direção ao quarto da que será seduzida e que espera ser, assim como fez Kierkegaard. Minha decisão estilística se baseou em duas razões: uma delas é que esteticamente não achei necessário descrever o ato sexual, mas estava convencido, e ainda estou, de que teria muito mais força narrativa deixá-lo implícito e dar ao leitor a liberdade de preencher o vazio. A outra razão é que em minha novela decidi tensionar ainda mais a corda do que Kierkegaard faz na sua – com a ressalva de que minha decisão não teve a ideia desatinada de melhorar o texto de um autor pelo qual declaro minha reverência – em que os protagonistas mantêm uma relação mais ou menos tradicional de namoro, com compromisso matrimonial incluído. Em minha novela, a finalmente seduzida se compromete matrimonialmente, mas não com o protagonista-narrador, e sim dentro do seu namoro formal. Meus personagens não trocam uma única palavra em toda a narrativa e também não se sabe quais poderiam ter trocado durante a concretização do ato amoroso, cujo desenvolvimento é omitido elipticamente.

 

No romance, há uma ideia de incomunicabilidade e mesmo de impossibilidade do amor entre um homem e uma mulher. De que maneira isso reverberava o que pensava o autor à época? E o que você pensa sobre os relacionamentos humanos hoje, passados todos esses anos?

O autor, naquela época, estava demasiado inquieto em relação à confusão que rege as relações humanas, não mais do que está hoje.

 

O seu editor espanhol, Mario Muchnik, dizia que você escreve com “pulso de cirujano”, e isso fica claro em Os olhos do diabo. Como é o seu processo de escrita? Ela surge naturalmente ou é resultado de um grande esforço?

Devo dizer que tenho a enorme sorte de nunca ter sofrido de angústia diante da página em branco. Não acredito ter dotes naturais para exercer nenhuma das artes e, em particular, a literatura. Minha escolha foi consequência da necessidade existencial de contar com um meio que me permitisse uma abordagem holística da realidade, visto que minha profissão científica me havia dotado com as ferramentas para me aproximar dela de forma profunda, mas limitada pelas antolhos da especialização. E escolhi a literatura de um modo muito prático. Visto que não tinha aptidão congênita para outra coisa, como, por exemplo, a pintura ou a música, coloquei o problema nos seguintes termos pragmáticos – isso é textual: “Conheço o alfabeto, tenho caneta e tenho papel”. Minha sorte foi que, de fato, tinha uma condição para tentar a aventura literária, que é minha imaginação fecunda. A tal ponto que, para poder ser um escritor sem que a imaginação me superasse e transbordasse a obra, tive que domá-la com severidade, “a chicotadas”, como sempre digo. Certamente, minha facilidade para preencher páginas e chegar a um resultado decente se complementa com uma extrema rigorosidade, diria até obsessiva, na correção dos meus textos.

 

Em uma matéria publicada em 1987 sobre o seu romance Proyección en 8 mm y blanco y negro, durante una reunión de familia, un sábado por la tarde, o jornal El País comparou a sua prosa à de Proust, e não a de qualquer outro escritor argentino. Já o Espresso, de Buenos Aires, o comparou a Kundera. Você sente que faz parte da tradição literária argentina, ou se sente apartado dela?

Não me sinto influenciado por nenhum escritor argentino em particular, mas, como compartilhei com eles o mesmo ambiente e, suponho, comidas similares, não posso negar a influência geral da cultura que a todos nós envolve.

Por outro lado, reconheço algumas influências literárias europeias. Isso não é uma pretensão elitista da minha parte, já que dessas raízes culturais provêm todos nós, latino-americanos. Com relação a Os Olhos do Diabo, o falecido poeta argentino Mario Trejo me ligou em Madri, de San Sebastián, onde então residia, para me dizer: “Li sua novela da Mitteleuropa”. Se ele disse isso, e algo semelhante foi dito também por uma publicação de Buenos Aires, algo disso deve haver na minha novela, embora eu não o tenha planejado.

Mas há outra influência que admito explicitamente e reivindico, dada a admiração que sinto pelo autor, que é a de Marcel Proust. Essa influência é muito evidente na novela Projeção em 8 mm.... Só quero esclarecer um ponto, em defesa do exercício da liberdade criativa. Acredito que em minha novela Projeção... eu dou ao leitor o poder de sonhar e imaginar, algo que Proust não permite – e isso não pretende ser uma crítica, uma vez que nunca me permitiria fazê-la a um escritor de sua estatura. É simplesmente uma opção. Proust não deixa que o leitor sonhe ou imagine, porque ao longo de toda a sua obra ele mantém um controle férreo sobre ele. Proust não suporta que uma única palavra de À la recherche du temps perdu (Em Busca do Tempo Perdido) escape à sua vigilância. No entanto... Sempre há um “no entanto” na obra de arte, mesmo na mais perfeita, como é a de Proust. Há uma cena, uma única cena em Albertine disparue (no Brasil traduzido como A fugitiva), quando Marcel evoca aquela Veneza – para a qual o próprio Proust viajou duas vezes em 1900 e para onde deseja voltar, sem nunca decidir fazê-lo – em que Proust, sem querer, afrouxa seu controle, e o leitor levanta os olhos do texto e sonha também com Veneza. Se Proust tivesse percebido isso após a publicação do romance, algo que, paradoxalmente, teve a sorte de não acontecer, pois a publicação deste volume foi póstuma, ele teria sofrido a maior amargura ao sentir, talvez, que por esse único descuido, toda a sua obra seria um fracasso.

Da influência proustiana em uma parte da minha obra – que nunca pretendi ocultar – já há um prenúncio em Os Olhos do Diabo, naquela cena do lanche do protagonista quando criança, composto por café com leite acompanhado por bolachas cobertas com doce de batata e queijo fresco, que explicitamente se refere às “madeleines”, embora sem dar nenhuma pista da origem da citação.

Depois de Projeção, abandonei o fraseado envolvente de corte proustiano, optando pela frase curta, embora sem nunca negligenciar a busca pela austera pertinência da linguagem.

 

                     

                                

 

 

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