Bruno Inácio escreve sobre "Lágrima sobre a Pastoral"
Bruno Inácio escreve sobre "Lágrima sobre a Pastoral"
Lágrima sobre a Pastoral: entre a violência, o não-pertencimento e a reinvenção
Bruno Inácio
Recém-lançado pela editora Nauta, Lágrima sobre a Pastoral é um potente e delicado romance escrito por Rafael Azevedo, autor e pesquisador paraense. No enredo, o protagonista Angelim se depara com a sensação de não-pertencimento, ao mesmo tempo em que tenta lidar com a violência que o cerca na propriedade rural em que vive.
Esse lugar, isolado e a princípio alheio a todo o resto, é onde o personagem central cava repetidamente em busca de água limpa para uma família que não o acolhe nem o respeita. As violências mais perceptíveis vêm de Carvalho, um irmão provocador e arrogante, que deixa claro, desde o início, que Angelim não pertence àquela família. Ainda assim, deseja mantê-lo por perto, de preferência no papel de um bode expiatório e obediente.
Angelim, por outro lado, está bem longe da submissão. Responde “não sei” com frequência, como um Bartleby que prefere não fazer. Resiste de seu modo, enfrenta demônios patriarcais, subverte estruturas, sublima em sonhos agitados e planeja um futuro bem longe daquele lugar e daquelas pessoas.
Enfrentar quem o enxerga como propriedade, no entanto, não é tarefa fácil. À medida que a história avança, fica evidente que existe um plano perverso e complexo, por vezes diluído no discurso protetor de pais que dizem saber o que é melhor para seus filhos.
Nesse ponto do romance, o autor já demonstra ter bagagem literária suficiente para evitar as armadilhas do lugar-comum. Isso porque os embates narrados ao longo da história caminham com muita delicadeza e assertividade entre o dito e o não dito, o concreto e o abstrato e o texto e o subtexto.
Cada personagem tem suas complexidades e seus próprios conflitos. Na prosa de Rafael Azevedo não há espaço para o raso. Também por isso, até a água e a terra assumem papéis inusitados e essenciais – não só para contribuir com o desenvolvimento da trama, mas também para possibilitar um acesso mais profundo à psique de cada membro da família.
Outro aspecto que se destaca é o cuidado do autor com a ambientação. Árvores, plantas, janelas e insetos proporcionam uma imersão das mais autênticas e irresistíveis. Por vezes, a natureza até funciona como um ponto de calmaria em meio à tensão estabelecida pela dinâmica disfuncional da família. Porém, logo em seguida, impulsiona um grito seco e abrupto em quem se vê tão acuado quanto Angelim.
Essa imersão também é provocada por fluxos de consciência, rupturas na realidade e figuras de linguagem elegantes e perspicazes. Nesse sentido, Pastoral deixa de ser um lugar para se tornar um incômodo autoritário e onipresente, ao passo que Angelim abandona o conceito de forasteiro para se transformar numa ideia viva e pulsante.
Em Lágrima sobre a Pastoral, Rafael Azevedo constrói uma narrativa rica em significados, moderna em estrutura e corajosa em seus temas. O romance traz uma poderosa história sobre violência, pertencimento, hipocrisia e, sobretudo, transformação, além de exemplificar muito bem a originalidade e a versatilidade das novas vozes da literatura brasileira, especialmente aquelas que têm conquistado seu espaço longe do eixo Rio-São Paulo.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em Comunicação e autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá) e Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros). Escreve sobre literatura no Jornal Rascunho e na São Paulo Review.
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