Em um mundo que exige de nós atenção fragmentada e respostas imediatas, observar verdadeiramente já é um ato de resistência. Transformar essa atenção em poesia, no entanto, requer mais que tempo: exige sensibilidade aguçada, um olhar capaz de capturar o que escapa aos apressados.
Octavio Carmo domina essa alquimia rara. Em Aos que descem a montanha, ele não apenas enxerga o invisível nas miudezas do cotidiano (o peso de um silêncio, a cartografia de um gesto, a alergia da alma à própria primavera), mas as traduz em versos que reverberam como pequenos espelhos. Seus poemas são feitos dessa matéria-prima delicada e poderosa: a capacidade de nomear, sem reduzir, as coisas que todos sentimos, mas poucos sabem descrever.
O poeta não teme explorar as contradições da condição humana. Há um diálogo constante com o tempo, seja ele geológico, histórico ou íntimo, como se cada poema fosse um grão de areia na ampulheta. A montanha, metáfora central, não é um destino, mas o caminho que nos transforma ao desfazer-se sob nossos pés.
Aos que descem a montanha oferece ao leitor não um consolo fácil, mas a coragem de descer. O livro nos convoca a aceitar a queda como parte do voo, a encontrar beleza na impermanência e, sobretudo, a permanecer, mesmo quando tudo parece efêmero. Portanto, aceitemos o convite do autor: "Permaneçamos".
- Carla Maria Carreiro
Octávio Carmo escreve por combustão. Ao ler os versos das três seções que estruturam o livro: "Suspensão", "Queda" e "Impacto", podemos imaginá-lo andarilho num duplo movimento: por um lado pelas ruas de sua cidade, sob seu céu azul, fazendo-se pássaro por observação; por outro, caminhante das entranhas da alma, numa combustão de dúvidas, ponderações, uma ardência de quem está todo entranhado na matéria viva que é a argila da sua composição poética. Neste Aos que descem a montanha, Octavio cria um movimento que evoca uma jornada vertical - da ascensão ao descenso, culminando no encontro com o real da existência.
O poeta imprime uma tensão entre opostos em sua poética: o alto e o baixo, a suspensão e a queda, o eterno e o efêmero. Constroi uma linguagem que oscila entre o místico e o cotidiano, explorando temas universais como a mortalidade, o amor, a solidão e a busca de sentido. Na seção "Suspensão", Octavio estabelece a perspectiva das suas observações em verso: "Nesse fio, / Suspenso no vazio, / Um equilibrista dança: / Crença por cima do abismo". A imagem do equilibrista como metáfora central para a condição humana - mas atravessado pela consciência transcendental, o olhar do poeta: um olhar participativo porque observa a cena mas está implicado nela, ele próprio é equilibrista sobre o abismo.
Os versos curtos e livres revelam sua relação profunda com a música, não numa referência tão explícita, mas no que há de inescapável que abita sua forma de compor: ritmo e sonoridade tecendo uma batida por vezes entrecortada quase ofegante. O uso de parênteses e barras fragmentam o discurso, oferecendo ao leitor não só mais do que uma possibilidade de leitura, mas sugerindo pausas, respirações, lembrando-nos que o silêncio também faz parte da música, da escrita, da composição: "(Em suspensão) / As partículas / Da existência". O livro como um todo tem uma arquitetura musical - os poemas numerados funcionam como movimentos de uma sinfonia e a própria progressão temática (suspensão-queda-impacto) sugere uma composição em três andamentos. Octávio tem o mérito de escrever esse livro oferecendo uma coleção de poemas que é simultaneamente íntima e universal. A poesia vai se desdobrando tanto sobre a vida do lado de fora, quanto a vida interna e nesse limiar entre o dentro e o fora há espaço também para a meta-poesia, para uma reflexão sobre o próprio ato poético: "Cultivo um excesso / De ingenuidade / E lanço palavras, / Acreditando no seu retorno". Uma autorreflexão que perpassa toda a obra, revelando que o questionamento do poder e dos limites da palavra não se separa de outros questionamentos metafísicos.
A coletânea não se furta a abordar questões do nosso tempo. Em poemas como "IA" e "Digitais", Octávio reflete sobre o agora: "Conheço / Todas as palavras, / Só não sei / Onde procurar / A alegria" e questiona nossa relação com a tecnologia: "Sem lugar, / Sem calma, / O polegar / Entristece a alma". Em seu movimento final, poema-título, que encerra a obra, o poeta oferece uma síntese da jornada: "Uma ascensão / Agora imaginada / Nas memórias do regresso. / O prazer de contar a subida / Na inevitável descida / Para o nunca mais", revelando o movimento paradoxal da experiência poética: ascender através da descida, encontrar elevação no retorno ao terreno, mostrando-se numa linhagem de inspiração direta com a Comédia de Dante.
A obra de Octávio Carmo se apresenta como uma meditação profunda sobre a condição humana, construída através de uma linguagem depurada que não teme o silêncio nem os espaços em branco. É uma poesia que convida à contemplação e ao reconhecimento de nossa fragilidade fundamental e constituinte, mas também de nossa capacidade de criar beleza e sentido mesmo (mesmo onde porventura não há) – ou especialmente – diante do abismo. Não poderia ser diferente a criação desse poeta, tão arraigado à vida, tão devoto à combustão da alma.
- Francesca Cricelli