Leia um conto de "Inventário dos maus sentimentos", de Jeferson de Sousa
Leia um conto de "Inventário dos maus sentimentos", de Jeferson de Sousa
Abdução
Então me vi ali. Eu era um animal entocado na escuridão, apenas os olhos à vista, a respiração quase suspensa, nenhum movimento. Era a imobilidade, mas não a paralisia. A paralisia é o medo, a impossibilidade, a desistência. A imobilidade é a espera, a espreita, o estado alerta para a fuga, para o ataque ou para a luta até a morte. E, eu me vendo aquele animal, pensei: “Ele está com medo”. Mas eu, animal, não sentia medo. Porque o medo pode ser domado – pelo cansaço, pelo tempo, pela confiança. O medo perde-se. Não, eu não sentia medo. Eu, animal, sentia a incontornável necessidade de estar só, de não confiar jamais, de estar longe das mãos e dos olhos piedosos e traiçoeiros, que alimentam e controlam e tomam tudo para si.
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Me mudei para cá há uns dez anos, pouco mais ou pouco menos. Queria estar só. Avisei pouca gente sobre a mudança; mesmo assim, muito contrariada. Sabia que dariam a minha localização para a minha filha ou, pior, para o meu filho. Foi o primeiro a aparecer. Trouxe com ele um menino apalermado e resfolegante – 7 ou 8 anos, deduzi, pois não sabia de sua existência quando parti. No começo ensaiou um discurso envernizado em descompostura: isso é coisa que se faça, sumir sem avisar ninguém, fazer as malas na calada da noite, deixar todo mundo preocupado, blábláblá. Depois se acalmou e indicou o garoto com o queixo. Seu neto, disse esperando algum brilho nos meus olhos. Percebi a expressão decepcionada quando me mantive indiferente. Eu poderia ter disfarçado, mas esse longo período isolada me tirou o traquejo social.
Mentira: me mantive indiferente porque aquele menino não me inspirava ternura alguma. E também porque senti uma certa satisfação em decepcionar o meu filho. Por educação, ou por falta de assunto, perguntei por sua irmã. Estava ótima, ascensão meteórica em uma empresa sueca, reportou ele enquanto olhava ao redor – as araucárias cercando a casa, a nesga por onde se via o vale, a estrada de terra lá embaixo. Parecia incomodado por eu não tê-los convidado a entrar. Para quebrar o silêncio, ou para me irritar, falou do Allan. Papai está bem, foi morar com Cynara em Montevidéu; lembra da Cynara? Eu lembrava da Cynara, e naquele momento tive certeza: seu objetivo era me irritar. Como se eu fosse a culpada de Allan se apaixonar pela gostosa recém-divorciada com quem dividia a raia na piscina do clube. Para meu filho e minha filha eu era, sim, a culpada. Mamãe, você é muito indiferente com papai. Quando eram crianças diziam pai e mãe; só começaram com esse troço irritante de papai e mamãe depois de entrarem no colégio caríssimo em que Allan fez questão de colocá-los.
Ficamos naquele impasse por um bom tempo. Tá escurecendo, vai esfriar, ele observou. Vai, respondi olhando para o céu. Ele havia reservado chalé numa pousada do outro lado da cidade; a mulher o esperava lá. Imaginei-a refestelada na piscina daquela pousada metida a besta – não iria enfrentar essas estradas poeirentas para olhar a minha cara, óbvio. Ele despediu-se com um aceno de longe. Dê tchau para a sua avó. Estendi a mão ao menino para evitar alguma tentativa de beijo ou abraço. Os dois escorreram para dentro da SUV e partiram. Nunca mais os vi. Ele deve ter comentado a situação constrangedora com a irmã, pois ela jamais apareceu por aqui. Melhor assim.
Quando me mudei para cá, eu trouxe o cão. Cador não se dava bem com os animais da mata, eles sempre rondando o terreiro por curiosidade ou fome. Resolvi dá-lo a Antonio no dia em que encontrei uma gambá fêmea morta e cercada por seis filhotes, todos também mortos. A trilha de sangue ia até a varanda, onde Cador dormia despreocupado.
Quando ofereci Cador a Antonio, ele não quis aceitar. A senhora precisa de uma proteção morando naquela lonjura sem ninguém por perto, argumentou. Não sei se teria o mesmo pudor caso eu fosse homem. Talvez sim por se tratar, mulher ou homem, de uma pessoa velha. Vai saber. Nos primeiros anos Antonio costumava me informar sobre o cão. Estava bem, gostara do sítio e das crianças. Com o tempo parou com os relatórios; talvez por fastio, talvez porque o relacionamento com Cador não estivesse indo tão bem.
Sem o Cador, os animais da mata voltaram: saruês, ouriços, tatus, guaxinins, quatis. Às vezes invadem a varanda ou passeiam pelo telhado. Vi uma ou outra raposa, algum cachorro-do-mato. Então apareceu o lobo-guará. Começou a frequentar o terreiro, e passei a dispor nacos de carne estrategicamente para ele. Apelidei-o de Guaraná – eu sei, é meio besta, mas isso era entre mim e ele –, e durante alguns anos mantivemos uma relação cordial e sem intimidades, como deveriam ser todas as relações. Uma noite não apareceu. E na outra, e na outra. Passei meses espreitando o terreiro noite adentro. Em vão.
Descobri o motivo numa tarde semanas atrás, quando fazia compras no armazém do Antonio. Encostado ao balcão, um sujeito tatuado tomava cerveja e contava a outros dois as façanhas de Tetro, um pitbull disciplinadamente treinado para ataque. Tetro subia em árvores. Tetro ia direto na jugular da vítima. Tetro matara dezenas de animais selvagens ao redor do sítio. Tetro havia atacado até um lobo-guará, mas isso lhe custara a orelha esquerda. Tetro.
Uma semana depois voltei ao armazém sob o pretexto de ter esquecido algo da lista de compras. Circulei entre as prateleiras buscando uma forma de sondar informações sobre o dono do Tetro. Nem foi preciso muito esforço: Antonio é linguarudo contumaz, sempre relatando rotinas e intimidades das vizinhanças (não tenho dúvida de ser personagem de seus informes; a velha louca que mora isolada com seus livros no antigo chalé do Seu Binho; ela compra frutas e carne – carne de primeira! – para alimentar os bichos selvagens; nas noites de lua cheia, dizem, senta-se na varanda e uiva para a Lua).
O dono do Tetro chamava-se Dema, ex-jogador de times medianos. Aposentara-se e tinha herdado a pequena fábrica de queijos do pai; não gostava de trabalhar e preferia deixar os cuidados da queijaria com os antigos funcionários enquanto gastava seu tempo treinando Tetro; testava os resultados do treinamento nos bichos da mata; já tinha arrumado encrenca com os vizinhos quando cabras e bezerros apareceram estraçalhados.
Sob o pretexto de comprar queijos fui visitar a Santa Luita Queijos Finos. O queijos finos foi ideia do Dema para poder vender seus produtos nos mercados gourmet da capital. Meu filho e minha filha certamente eram consumidores. Havia uma pequena loja na entrada da queijaria, nas paredes uns pôsteres com vista aérea do local, fotos de vacas holandesas, certificados de excelência, reportagens em revistas gastronômicas, fotos do Dema cercado pelos queijos finos; na vitrine, os queijos com nomes impronunciáveis.
Ao lado da loja uma cancela guardava o pequeno caminho pavimentado por pedras, uma grande casa protegida por muro e portão gradeado ao fundo. Tetro passeava do outro lado do portão. Esse carro era do Seu Binho, né?, perguntou-me apontando para o fusca bege a recepcionista da loja, uma menina morena com um piercing no nariz e dentes embaraçosamente brilhantes. Assenti um pouco contrariada; não queria me identificar naquela situação. Comprei um queijo amarelo e à noite o provei acompanhado de um vinho ordinário fabricado pelo Antonio – ele havia me presenteado com duas garrafas meses antes. O queijo não era ruim.
Quando voltei à queijaria a recepcionista abriu o largo sorriso. Uma quarta-feira fora de temporada, e eu estava ali, rompendo seu tédio na manhã desocupada. Então, a senhora gostou? Maravilhoso!, respondi. É sempre bom usar maravilhoso – sugere elegância, confiabilidade, insuspeição. Maravilhoso!, repeti. O sorriso da menina alargou-se. Pedi um queijo de nome complicado que constava no cardápio, mas não estava na vitrine. A menina em seu sorriso alvo pediu um momento para buscá-lo no estoque. Aproveitei a breve ausência e me encaminhei para a lateral da loja.
Atravessei a cancela e fiquei frente a frente com Tetro. Ele não latiu – do outro lado das grades encarou-me com os músculos tensos, em alerta. O Tetro ia direto na jugular da vítima. Enquanto o encarava de volta, tirei da bolsa o lenço no qual envolvera os dois bolinhos de carne. É curioso como as pessoas podem passar a vida cercadas pelos mais letais venenos sem se dar conta: uma simples folha, uma semente triturada, a casca de uma árvore cuja resina é ativada com determinado ingrediente; está tudo aí, ao nosso redor. É preciso ter atenção com a eficácia. Sempre ensinei aos meus alunos que o efeito deve ser rápido e o menos doloroso possível.
E, quando os olhos de Tetro encararam minhas mãos abrindo o lenço, um pensamento estalou em minha mente: Tetro era só uma vítima das circunstâncias. Não escolhera estar ali, atrás daquele portão. Não escolhera seu dono nem ser cão, nem assassino. Tetro era fruto da aleatoriedade da vida, como tudo o mais é. Como essas elucubrações virem à minha mente naquele momento, e não antes, ou depois. Como ter cruzado com Allan décadas atrás, dois seres inteiramente díspares unidos pelo imprevisível. Não poderia dar certo, como não deu. Mas, afinal, o que é dar certo? A exitosa carreira de meu filho e de minha filha? Allan e Cynara? Guardei o lenço na bolsa e voltei à loja. Não era o dia de Tetro. Ainda não.
Sim, a vida é uma longa sequência de casualidades conectadas em outros acasos. Assim, algumas noites atrás ocorreu um evento curioso: sobre estas matas durante longo tempo pairou uma misteriosa luz. Não foram poucas as testemunhas a relatar o fenômeno. Eu mesma não a vi, pois tinha lá outras demandas naquele momento. Veja como é fortuito: isso aconteceu no mesmo dia em que eu dirigia lá para os lados da Serra do Ermo e alguém me acenou do meio da estrada.
Muito raramente há viva alma por ali, e é praticamente um milagre, uma coincidência improvável, eu estar passando àquela hora. Isso foi constatação de Dema em meio a um sorriso aliviado ao lado de sua caminhonete. O carro parou do nada, nenhum sinal de vida, disse batendo no capô. Perguntou se eu poderia lhe dar uma carona até algum local habitado. Aquela crista de serras entre os pinheiros era um desamparo simetricamente apartado das duas cidades da região, ambas acessíveis apenas por carros tracionados ou motos. Ou por um intrépido fusca, caso se soubesse os atalhos. O lugar mais próximo do termo habitado era o chalé construído por Binho, o excêntrico eremita.
Durante muito tempo se falou da misteriosa luz. Como ela pairou sobre a Serra do Ermo, onde dias depois encontraram a caminhonete de Dema com a chave no contato. Foi abduzido, comentam com uma inflexão meio aterrorizada. Aos céticos devolvem: o que mais poderia ter sido? E os céticos se calam, eles próprios tentando não se aterrorizar com o tal mistério. Várias buscas ocorreram – a Serra do Ermo nunca viu tanta gente em sua existência. Em vão. E o misterioso desaparecimento de Dema vai se erigindo em nova lenda nestas serras.
Tetro foi parar em uma ONG. A ex-mulher de Dema tinha horror ao cão, e entre os empregados da queijaria nenhum se animou a adotá-lo. Ela rapidamente acionou uma entidade para cuidar da fera antes de esvaziar a casa. Quem me contou foi a recepcionista da loja de queijos, Suzete (é um nome anacrônico para uma garota de 17 anos; imposição da mãe para homenagear a avó). Aos poucos fui simpatizando com ela; não desgostaria se tivesse uma filha assim. Isso descobri depois de me tornar assídua da loja. Sim, tomei gosto pelos queijos de lá. Acabo de abrir um deles e, para acompanhar, uma garrafa do ordinário vinho do Antonio. Aqui da varanda a Lua promete. Talvez eu até arrisque um uivo.
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