Leia uma crônica de José Carlos Aragão

Leia uma crônica de José Carlos Aragão

Um desencontro fortuito

 

     Eu, quando morava e trabalhava em Copacabana, em fins dos anos 1970, por duas vezes reconheci o poeta na rua. 
Da primeira vez, íamos pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, Drummond e eu, cada qual carregando seu fardo, suas angústias, sua palavra bruta a esperar a lapidação necessária para ser incrustrada em, talvez, algum futuro poema ou crônica – no caso dele, é claro.
   Naquele tempo, eu era apenas um cartazista das Casas da Banha que aproveitava o intervalo do almoço pra dar um pulo na redação d’O Pasquim, ali perto, tentando apresentar ao quase conterrâneo Ziraldo meus cartuns ainda imberbes. Eu ainda não fazia planos de me tornar cronista ou contista, e meus poemas de então eram apenas um eco não muito distante dos que eu já escrevia na adolescência, para expiar um amor platônico ou frustrado. 
   O poeta morava ali perto, então era natural que circulasse pela região, garimpando possíveis temas ou personagens para seus escritos. Não por acaso, acabou perpetuado em bronze, sentado em um banco, na praia, contemplando não o mar, mas os variados tipos que desfilavam no calçadão. Ou talvez gostasse de circular a pé pelo bairro apenas para espairecer e se desapegar um pouco de sua lida diária como outro tipo de tipos: os da máquina de escrever. 
Numa outra ocasião, eu chegava para trabalhar quando, a poucos metros do supermercado, eu o reconheci vindo na direção contrária. Retardei um pouco o passo, cogitando abraçá-lo como a um velho amigo. Mas uma luz piscou diante de mim, alertando-me para o equívoco: não éramos amigos de verdade e eu estava confuso porque estava diante de Deus.
    Deixei-o passar por mim, parei e olhei-o seguir adiante, com seu circunspecto andar mineiro. Seguia ignorado pelos passantes, incólume, o mais popular e desconhecido poeta do país. 
   Como ainda faltavam uns quinze minutos para bater o ponto e eu estava parado em frente à loja, decidi voltar e ir em sua perseguição, alguns passos atrás dele. Talvez, à sua passagem, o ar que ele deslocava ao caminhar contivesse alguma emanação de poesia bruta que me pudesse iluminar a vida besta e dura que eu levava. 
   Pensei em apertar o passo e interpelá-lo, mas, de novo, a luz da razão piscou à minha frente, vermelha. Parei e deixei-o seguir anônimo na multidão, protegido por seu campo de força invisível.
   Dessa forma, fiquei sem ouvir sua voz, sem ter seu autógrafo e – como não havia dessas coisas àquela época – sem fazer uma selfie. 
   E ainda levaria uma década para que eu criasse coragem de desengavetar um poema, inscrevê-lo em um concurso nacional da extinta TV Manchete, conquistar o primeiro lugar e me decidir a ser escritor. 

 

 

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