Bruno Walter Caporrino escreve sobre "O domínio da violência"

Bruno Walter Caporrino escreve sobre "O domínio da violência"

Quando o homem cordial escancara os dentes: o romance O domínio da violência, de Marcelo Nunes, como etnografia de um Brasil emergente

Para Vanessa, In memoriam

Bruno Walter Caporrino

 

 

Poucas são as obras de arte que atingem o nirvana que consiste em realizar na plenitude a função social da arte. O romance O domínio da violência, de autoria do escritor Marcelo Nunes e publicado pela editora Nauta em 2024 deve ser considerado como uma dessas raras obras.

Fruto de uma empreitada muito corajosa, o romance narra a ascensão e queda de um Brasil que passou a esbravejar, através de um enredo que tem como centro narrativo uma família de classe média alta e como contexto a convulsão social que acometeu o país a partir de 2018. Tal contexto emerge das entrelinhas do texto, tal como a água que mina pelas falcas de uma canoa e é nisso que consiste sua preciosidade.

Corajoso porque Nunes encara o desafio de versar sobre a ascensão meteórica do discurso de ódio em um país que sempre odiou em silêncio. Corajoso porque o centro narrativo é uma família de classe alta e corajoso porque essa família se realiza e movimenta livremente: Nunes parece fazer um tributo à Pirandello que, em seu célebre conto A tragédia dum personagem, narra como as personagens batem à porta de seu gabinete em horários determinados de audiência do autor e se apresentam prontas, vivas, inteiras, com todos seus nós, enredos, contradições e anseios, desejando que o autor lhes dê um enredo, seja num conto, numa peça, num romance.

Pois parece ter sido assim o processo de escrita de Nunes. É como se ele tivesse feito muita etnografia, observação participante a mais malinowskiana, visto em detalhes a vida dessa família mas, também, etnografado o contexto social e político em que o enredo se desenrola. Sem que sejam levados a um tribunal de hashtags prontas, ao self service da lacração rasa e rotulante, as personagens do romance são o que são, como são, e vivem-se à si mesmas quase que à despeito da pena do etnógrafo.

Isso é poderoso sobretudo porque a forma, aqui, segue a função; o tema do romance, seu verdadeiro enredo e suas reais personagens, que são a polarização narrativa acirrada que, à flor da pele, tomou corpos e peles como foco de disputas narrativas odientas, rancorosas, acusatórias, neurastênicas e a agressividade, a violência física, concreta, que disso decorreu em anos recentes.

Complexa, eivada de metatexto e marcada pela atribuição de responsabilidade ao leitor pelos juízos, a narrativa apresenta personagens clivadas por múltiplas camadas, atravessadas por muitas contradições: nada é simples, preto no branco, a não ser a tipografia física em si.

O enredo é complexo, atravessado por múltiplas discursividades. Nunes é corajoso porque expõe as personagens com naturalidade e, mais do que isso, a fim de apresentá-las em sua profundidade, recorre intensamente ao discurso indireto livre para concretizar a empreitada.

Isso, senhoras e senhores, é de uma coragem intensa, uma vez que dada a polarização marcada por odiadores, de um lado, e odiadores do ódio, de outro, explorar por meio da arte um enredo desses com sensibilidade e profundidade coloca o autor numa posição duplamente delicada: pode ser mal lido e mal interpretado por ambos os lados e, consequentemente, se arrisca a sofrer as duras críticas, rotulações, julgamentos, que de um lado da querela podem engendrar em violência física e, de outro, em cancelamento, rotulação, ostracismo – sem direito à ampla defesa e ao sagrado contraditório.

Só isso, essa postura diante dos fatos narrados e a coragem de expor as personagens e o enredo com profundidade e sensibilidade, usando corajosamente o discurso indireto livre a fim de completar a apresentação dos vieses e visões de mundo das personagens – assumindo o risco de ser mal interpretado e prontamente rotulado, odiado e cancelado – já revela muito sobre o conteúdo do romance.

Esse é um dos raros romances em que forma e conteúdo se imiscuem. Com uma relativa complexidade, pois a postura do autor ao construir o enredo e movimentar as personagens mobiliza o leitor a acionar seu próprio regime de valores e julgar o autor – e não as personagens ou a obra.

Mas há, afinal, outra forma de se fazer boa literatura, de verdade? Sempre cri que não, e Nunes revela que essa é, talvez, a melhor – se não a única – maneira de fazê-lo. O romance, narrado em terceira pessoa por um narrador onisciente, ou ausente, teria de tudo para descambar em uma tese – ou reacionária, conservadora, ou extremamente rasa, em contraposição. É possível dizer que o autor está à margem: esquerda – dos acontecimentos, embora também o seu posicionamento seja pincelado, delicadamente, com sugestões seja no metatexto seja no plano da discursividade indireta das próprias personagens.

Mas isso só é percebido por bons leitores. Mais um ato de coragem na forma como o romance é narrado: o autor versa sobre ódio. Ódio enquanto discurso e ódio enquanto prática. É de violência que se trata – e o preâmbulo o anuncia muito bem, fornecendo inclusive aos leitores todos os elementos essenciais para que eles mesmos realizem a tarefa de tirar suas conclusões tanto a respeito do enredo em si, quanto acerca do contexto em que ele se desenrola e, por fim, acerca da própria obra e sua proposta estética e epistemológica.

Esse foi um dos fatores mais instigantes decorrentes da leitura dessa obra. Foi possível sentir a exasperação, o asco, a ojeriza pelo ato hediondo cometido por Duda, (e que o levara à julgamento e condenação), e pelos atos hediondos cometidos por Heloísa, sua mãe e, ao mesmo tempo, sentir o desgosto de compreender o que são, como são, as razões pelas quais o são. Compreendê-los, resultado do esforço em construção de verossimilhança por parte do autor, desperta ódio no leitor.

Isso causa um misto de terror e assombro: “eu os compreendo, e isso é horrível” – eis uma das reflexões que permeiam a mente do leitor. Mas logo em seguida, um bom leitor, capaz de correlacionar os elementos narrativos à forte e precisa metanarrativa que emana stanislavskianamente de cada entrelinha, de cada silêncio, se apercebe de que compreender não é justificar. Jamais.

E essa é a principal contribuição do romance. O enredo é complexo, mas pode ser resumido da seguinte forma: um jovem de classe média alta, filho de um diretor “bem-sucedido” de uma grande mineradora, comete um assassinato brutal. Com um bastão, esmaga a cabeça de uma mulher trans em uma noite na qual, divertindo-se com amigos, o fez por motivo fútil e banal: divertiram-se com o assassinato, com a aniquilação daquela humana por meio de seu corpo. Esse episódio causa cisões e rupturas brutais na família. A filha mais nova de João e Heloísa, de nome Lana, sofre sobremaneira com tal violência, e se pergunta como Duda pudera fazer aquilo com ela. Fortemente deprimida, Lana isola-se dos pais, sobretudo de sua mãe Heloísa, que foi a única a seguir falando e visitando Duda na prisão. Trocando cartas com ele, visitando-o na penitenciária, Heloísa não mede esforços para resgatar o filho, empenhando recursos de capital político, simbólico e, sobretudo, financeiro para tal.

E esse é outro ponto contundente do romance. Heloísa não almeja resgatar o filho da degradação em que caíra e que o teria levado a cometer o crime. Pelo contrário, Heloísa passa a paulatinamente endossar e louvar o ato hediondo por ele praticado, conforme a sociedade se mobiliza em torno do processo penal que o levara à punição pelo ato. Quanto mais a sociedade repudia o ato hediondo praticado por seu filho, mais hediondo se torna o repúdio de Heloísa pelos humanos diversos e pelos direitos pelos quais lutam à serem reconhecidos como humanos.

Nunes, como Stanislavski, lança muito habilmente mão das entrelinhas, dos silêncios, fazendo com que rancores, repúdio, mágoa e aversão inundem o palco, minando o enredo assim como o ódio minara a família – o leitor é convidado pelo autor a constatar por si mesmo que Heloísa odeia. Odeia toda e qualquer manifestação em busca de igualdade e justiça: odeia a mulher trans, odeia negros, pobres, indígenas, o meio ambiente; odeia tudo o que não seja riqueza, status e não reitere, com sua dizimação ou submissão, a posição de pretensa superioridade em função da qual toda a sua existência se dá. Uma escalada de ódio ascende ao topo até que Heloísa ab-reage: entra em epifania.

Parece que Heloísa é conduzida pelas mãos do autor ao divã do leitor que, reitero, saberá mais ou menos fazê-la – em sua mente, durante a leitura – desmoronar ao longo da história. Heloísa é uma personagem mais central que Duda, seu filho rico que assassinara uma mulher trans por puro prazer em sentir e realizar o ódio, praticando violência concreta ao aniquilar a alteridade em seu corpo. Porque no fundo Heloísa é o Brasil: ela odeia, subliminarmente, odeia com cada fibra de seu ser, odeia todos os diversos, os divergentes, os diferentes e odeia, talvez com mais afinco ainda, aqueles que “ousam” levantar a voz e clamar por justiça e igualdade.

Odiara a vida inteira e jamais o admitira. Sequer para si mesma. Odiara cordialmente: odiara sorrindo. Humilhara, desprezara os diversos, os subjugados, com sua existência, sempre preservando-a com um verniz de polidez, de cordialidade.

Mas ao longo da narrativa Heloísa passa a destilar o ódio que sempre a constituiu e inicia uma empreitada por meio da qual extravasa esse ódio latente a fim de formulá-lo e, assim, se dedica com cada vez maior afinco ao ódio narrativo: entra em cena a violência simbólica.

O leitor é convidado a constatar, então, que ela sempre odiara: não foi somente quando Duda foi julgado e condenado a cumprir pena em regime fechado (ironicamente junto à todos aqueles corpos que ela sempre buscou desumanizar e que convenientemente julgou merecerem estar presos, ser torturados, privados e punidos) que ela passou a odiar. Não foi somente quando setores progressistas da sociedade passaram a se mobilizar em torno da defesa dos direitos humanos fundamentais e em prol da justiça e da igualdade e, portanto, do direito daqueles diferentes da classe dominante de serem considerados humanos, tomando o caso de Duda como paradigmático, que ela passou a odiar os defensores dos direitos humanos.

A humanidade de Heloísa é ancestralmente, estruturalmente exclusiva: seu ódio é estrutural. Função de Heloísa, sua razão de existir enquanto humana, sua humanidade é a negação, justamente, de toda e qualquer humanidade diversa de si. Nascida em “berço de ouro”, ela sempre se julgou a titular por direito e razão da única humanidade possível. Humanidade essa que sempre permitira aos de sua classe esmagar crânios de humanos diversos simplesmente pelo prazer de poder fazê-lo.

Nunes introduz muito hábil e sutilmente conceitos de Arendt e Foucault em todo o romance e as dicas para isso, reitero, jazem no preâmbulo. Em linhas gerais o que ele faz com seu romance é nos conduzir pelos labirintos assombrosos do poder: poder no sentido foucaultiano, de poder fazer, poder matar, poder estuprar, poder violar, poder violentar. E paralelamente vai desenhando o enredo e conclamando as personagens a depor de maneira a fazer com que o leitor assuma seu papel de júri e, à luz dos fatos, detecte que o enredo é, na verdade, sobre a banalidade do mal.

Hannah Arendt é, aqui, inevitável e imprescindível, justamente por conta de seu precioso conceito de banalidade do mal. Tal potente conceito é por ela exposto em uma obra seminal, publicada em 1963, intitulada Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal e que se debruça sobre o julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém.

Arendt acompanhara o julgamento desse criminoso de guerra encarregado dos campos de concentração nazistas e revela, em sua obra, que todos esperavam que, quando capturado e exposto aos olhos do mundo, fossem encontrar um monstro sanguinário com feições macabras. Mas, pelo contrário, não foi isso o que viram: Eichmann revelara, no julgamento narrado e analisado por Arendt, não ser um convicto antissemita propenso à violência e ao discurso de ódio e nem mesmo se enquadrar na imagem de facínora mefistofélico que seus atos anunciavam.

Segundo Arendt, Eichmann teria sido única e exclusivamente um burocrata ávido por cumprir com máxima eficiência possível ordens superiores no exercício do desejo intenso de ascender profissionalmente – subir na carreira: e para tal dedicou- se, como cidadão de aparência pacífica, à aperfeiçoar técnicas de extermínio em massa apresentando soluções logísticas para o confinamento e queima de seres humanos como um técnico que se empenha em aprimorar a logística de uma empresa de gêneros eletrônicos.

Nessa obra seminal, Arendt retoma a clássica discussão que por milênios ocupara a filosofia, acerca da natureza do bem e do mal e conclui que o mal não seria uma categoria ontológica e, nem mesmo, metafísica: o mal é puramente contextual, histórico e, por conseguinte, político, sendo produzido enquanto discursividade e prática pelos homens conforme encontre mais ou menos espaço institucional. Para Arendt seria o vazio conceitual, de pensamento e reflexão, que o banalizaria, contribuindo fortemente para tal a sociedade de massas industrializada que produz vida e morte em escala industrial.

Heloísa se revela uma forte adepta da religião do ódio e passa a apegar-se a ele conforme a sociedade e sua própria família repudiam os atos de Duda. Longe de buscar resgatá-lo do mal ou redimi-lo, ela julga que ele agiu bem e passa a voltar sua energia contra “o sistema”. É então que encontra na internet o lenitivo para o ódio que lateja em sua mente, alma e corpo: percorrendo fóruns da deep web e, depois, acessando à luz do dia, em público, canais onde racismo, nazi-fascismo, discurso de ódio, apologia ao extermínio, à eugenia, discursos racistas e reacionários ganham espaço e adeptos, Heloísa se sente ecoada e, por isso, acolhida.

É então que dois personagens ganham peso na narrativa: João, seu marido, e Anderson, um jovem que mantém um canal no YouTube onde propala discurso de ódio e obtém vertiginosa adesão. Heloísa afasta-se cada vez mais de João ao passo em que se aproxima de Anderson, propondo-se inclusive a financiar seu canal: ela encontra ecos a seus desejos, anseios, pensamentos e pulsões entre os jovens mobilizados pela extrema direita em um Brasil que se encontra em efervescente ebulição.

Anderson não cria o discurso de ódio. Não cria o movimento de acirramento da agudeza dessa discursividade: ele canaliza, sintetiza, explora esse movimento. O processo de emergência de Anderson, dos ocultos porões e armários onde já “pensava” nesses termos, para o plano da discursividade virulenta aberta, é uma síntese, no romance, do que ocorre no Brasil de uns tempos para cá: o brasileiro mostrou as garras e dentes, livrando-se da culpa que parecia sentir em “pensar” assim e passando a propalar violentamente a violência.

João passa, então, a figurar com mais brio no romance, pois até então quem assumia a narrativa sobre ele era Heloísa que, em diversos momentos, o repudia por sua aparente tibieza. Isso serve à Nunes para construir um retrato de um João pacato, inofensivo, incapaz de praticar o mal. Sua trajetória pessoal é finalmente apresentada e um crime, por ele cometido no passado e sempre sutilmente instalado nas salas qual um imenso elefante, finalmente vai ganhando contornos.

“Executivo de sucesso” em uma mineradora multinacional, João seria o arquétipo da sociedade capitalista ocidental pós-moderna, o ícone dos coachs cuja principal função é conformar as bases para a aderência ideológica das massas à narrativa do capital, lastreada em uma visão assaz distorcida de meritocracia e frequentemente associada à “selva”, “leões”, “predadores”, “vencedores”, na consagração flácida de uma virilidade tíbia, medrosa, apavorada e, por isso mesmo, muito agressiva, violenta e perigosa porque aparentemente pacata, inerme e tíbia.

Julgando-se um vencedor, João teria alçado o topo. Teria uma bela família, patrimônio considerável, posição de sucesso: mas o “ícone” vacila quando esmiuça suas memórias e faz um exame de consciência diante do dramático afastamento de Heloísa e Lana. Cada vez mais frequentemente a pressão sobre seu ponto fraco é aumentada, tencionando-se no romance as relações a cada vez que João condena o ato hediondo de Duda: sua autoridade é cada vez mais frequente e duramente questionada por Heloísa, sempre pronta a esfregar em sua cara que ele também teria um passado tenebroso.

Anderson convida Heloísa para uma live em seu canal espúrio e sua participação é desastrosa até mesmo para a extrema direita. Ao se expor, virulenta, ab-reagindo freudianamente ao “sair do armário” e desabafar todo o ódio que circula em suas veias, Heloísa acaba expondo João e sua história.

E é aqui que a história realmente começa. É nesse ponto que os personagens principais realmente entram em cena. E quais são eles? Heloísa, João e, principalmente, a sociedade brasileira. Nunes conduz o leitor a constatar por si mesmo que, na verdade, o romance não é sobre uma família de classe alta cujo filho mimado exerceu seu poder de aniquilamento dos diversos e diferentes, mas sim sobre o Brasil.

Ao narrar a trajetória de João, funcionário de uma mineradora, Nunes apresenta o mais terrível assassinato cometido na história: João teria sido o diretor de uma mineradora que, recebendo um laudo avisando que as barragens de rejeitos se romperiam ceifando incontáveis vidas e poluindo Rio e Oceano de maneira irremediável, engavetou tal relatório a fim de não comprometer os lucros da empresa e salvar sua carreira, seus bens, seu prestígio e sua eficiência.

O rico e pacato empresário, que condena oficialmente o ato de violência do filho é, na verdade, Eichmann no Rio Doce: responsável direto por genocídio e ecocídio indeléveis e irremediáveis, João optou, mediante cálculo burocrático, por deixar passar, deixar acontecer, realizando e rezando o lema liberal. François Quesnay, o primeiro fisiocrata, que defendia o laissez faire, laissez aller, laissez passer, que significa literalmente "deixai fazer, deixai ir, deixai passar", ou seja, a não-intervenção do Estado na economia, encontra em João a reencarnação enquanto tipo ideal.

A escalada de tensão que Nunes habilmente orquestra possibilita então que o leitor se depare com a banalidade fisiocrática do mal. João Eichmann é, na verdade, o maior assassino do romance, por ter praticado consciente e conscienciosamente genocídio e ecocídio por razões e fundamentações estritamente fisiocráticas, barrando a fiscalização ambiental, burlando o controle estatal e social acerca do empreendimento e seus impactos a fim de progredir na carreira, confirmar sua posição de homem de bem, bem sucedido um exemplo para os pobres jovens desempregados que lotam os fóruns da deep web num primeiro momento e, de 2014 para cá, abertamente povoam a internet com seu discurso de ódio.

Heloísa odeia. Duda odeia. João não necessariamente odeia: ele ama. Ama o lucro. Ama o status. Ama o sucesso. E nesse sistema sociopolítico, sucesso só se obtém mediante aniquilação dos diversos: do sociobiodiverso. “Pacífico” e burocrata, João é no final das contas o principal assassino, de mãos dadas com um Brasil que, como Heloísa, sai do armário.

Lendo O domínio da violência não pude deixar de pensar, a cada página, sobre o conceito de banalidade do mal cunhado por Arendt e, outrossim, em outro conceito que sempre me pareceu absolutamente seminal para compreendermos o Brasil contemporâneo, especialmente o Brasil que, a partir do segundo turno das eleições de 2014, passando pelo golpe de 2016 e pelas eleições de 2018, passou a sair com força e furor do armário e assumiu-se o Brasil que odeia.

Tal conceito é o precioso conceito de homem cordial, cunhado pelo historiador Sério Buarque de Holanda em seu imprescindível Raízes do Brasil. Contemporâneo de Gilberto Freyre, cujas obras Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), Sérgio Buarque de Holanda publica essa obra capital em 1936 e, dedicando-se a uma análise aprofundada das estruturas sociopolíticas do Brasil com lastro em seu pesado passado colonial, esmiuça a organização social de um Brasil alicerçado na exploração de recursos naturais e de homens escravizados a fim de demonstrar como as raízes desse país encontram-se na estrutura, em seu passado colonial.

É então que dedica um capítulo desse precioso estudo à análise do que denomina homem cordial, quase como um tipo ideal weberiano pelo qual analisa a personalidade e a posição, bem como o atuar politicamente dos patriarcas que constituem as classes altas que enriqueceram, no país, à custa da exploração pela dizimação de corpos (de florestas, rios e gentes).

Segundo Buarque de Holanda, no Brasil a segregação racial sempre fora escamoteada por muitos misteres, mormente centrados na discursividade cordial: em vez de repudiar formal e declaradamente os diversos, em sua história os donos do poder no Brasil sempre buscaram por meio de inúmeros artifícios manter os contingentes explorados e subjugados em uma situação na qual, por muitos meios, não se percebessem humilhados, subjugados, explorados.

Diferentemente do que ocorrera com a segregação racial estadunidense, declarada e nítida, em que havia bebedouros, ônibus, bairros, escolas e banheiros segregados para homens brancos e homens negros, com legislação e narrativa assumidamente empenhadas em reiterar isso, no Brasil teríamos exploração, subjugação, humilhação e toda sorte de violência física e simbólica escamoteadas sob um verniz de polidez, de generosidade: paternalista, o patriarca tortura, humilha, viola e violenta sorrindo. Conforme o autor, ao contrário do que ocorreria, por exemplo, com povo japonês, entre os quais a polidez é parte intrínseca do processo civilizacional, no Brasil esta estaria única e exclusivamente na superfície. Em suas palavras:

Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no 'homem cordial': é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização da defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções. (Holanda, 1995: 147).

O homem cordial seria constitutivo da sociedade de classes racializada brasileira. O ódio contra os escravizados e subjugados seria diluído discursivamente ao longo da história do país por meio de estratagemas de aparente proximidade entre explorador e explorado. “Ela é quase da família” seria uma das frases arquetípicas mais violentas simbolicamente contra, por exemplo, as mulheres que hodiernamente trabalham como empregadas domésticas e que, em sua maioria negras, seriam “quase” da família – e jamais seriam da família, jamais poderiam pleitear portanto direitos trabalhistas, visto que, sendo “da família”, ao fazê-lo constituiriam uma afronta aos benfeitores que exploram sua força de trabalho.

Cordato e “generoso”, o homem cordial odeia com carinho: seus filhos “até possuem amigos negros”. Apelando para uma contingencial e muito bem escolhida narrativa segundo a qual subjugados seriam, em verdade, beneficiados, o homem cordial brasileiro subjugou e explorou sob um viés paternalista, apelando para estratégias de aparente acolhimento cuja principal função sempre foi impedir, por todas as vias possíveis, a aquisição de consciência de classe por parte dos subjugados e explorados, uma vez que esta aquisição seria a pedra de toque para revoltas e revoluções a respeito da condição que, assim, visou-se perpetuar.

O homem cordial odeia, explora, subjuga e humilha, porém o faz com requintes de violência simbólica e, mesmo diante de toda violência física que pratica para se perpetuar, recorre a narrativa e discursividade com matizes e clivagens ubíquas e múltiplas para escamotear os fatos e, assim, propagar que não há racismo, não há violência, não há exploração. Pacífico, honesto, trabalhador: defensor da tradição, da família e da propriedade, esse seria o cidadão de bem, ironicamente o que, em nome da acumulação de bens, pratica o mal.

João, Eichmann no Rio Doce, seria um homem de bem. De bens, sobretudo. Pacato cidadão “bem-sucedido”, ele não propalaria discursos de ódio; ele repudia a prática de sua esposa Heloísa nesse sentido, e ao final somos levados a refletir: será que não o faz apenas por não ser de bom tom? Humilhar, violar e violentar sim: falar rispidamente em prol disso ah, isso, jamais.

Em biologia há dois conceitos que seria interessante raptar: filogenia e ontogenia. Filogenia seria o percurso pelo qual uma espécie se perpetua e configura no tempo ao passo em que a ontogenia seria o percurso por meio do qual um indivíduo, um exemplar dessa espécie, se perpetuaria e desenvolveria.

Me parece que no romance de Nunes, a ontogenia – que seria a história narrada, o desenvolvimento dos episódios desde o ato hediondo praticado por Duda até a exposição dos atos também hediondos de João, passando pelos abjetos passos de Heloísa – ilustraria a filogenia: a história dessa família parece ser uma instanciação contingencial da história de um Brasil que, de 2014 até o momento, vivenciou um processo coletivo de ab-reação, saindo do armário, mostrando as garras e dentes afiados que sempre mantivera polidos. Literalmente polidos.

 

Bruno Walter Caporrino é bacharel em Ciências Sociais pela USP e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Mora na Amazônia desde 2008, dedicando-se profissionalmente como indigenista. Fotógrafo amador, escreveu contos, crônicas e ensaios - alguns deles publicados.

 

 

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. (26ª edição) São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

NUNES, Marcelo. O domínio da violência. Barueri: Editora Nauta, 2024

PIRANDELLO, Luigi. A tragédia dum personagem. In: A armadilha – contos. Porto: Livraria Portugália, 1946.

STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964.

 

 

 

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