O título da coletânea de poemas de Gisele Wolkoff é emblemático: O Lugar de Todas as Coisas. Um lugar é, antes de mais nada, uma construção elaborada por várias gerações humanas que nele habitaram ou por ele passaram, e que ajudaram a formular o sentido que tem, em cada momento histórico. Ele é constituído por redes públicas de sentido, formadoras de subjetividade. Nele se constituem interpretações públicas simbolicamente mediadas, inclusive sobre o sentido deste lugar e sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar, circulam elementos que de algum modo impõem sentido às experiências singulares dos sujeitos, elementos em relação aos quais estes sujeitos interpretam suas experiências (e os textos que leem), bem como direcionam suas ações. Em outras palavras, o lugar é sempre fonte de pré-concepções que de alguma maneira contribuem para a elaboração de nosso dizer, pois nele se situa o sistema de referências deste dizer – incluindo o universo de temas, interesses, termos conceituais etc. –, sistema que sempre já estabelece um limite dentro do qual nosso campo de enunciação se circunscreve. Lugares têm sempre história, e mesmo o apagamento de certos elementos constitutivos da história do lugar também é decorrente de razões históricas. Além disso, como se a própria presença do termo lugar no título já não fosse complexa o suficiente, Gisele Wolkoff acrescenta mais uma camada de questões, em seu poema:
As coisas todas têm um lugar
onde imperam as verdades
Além das “coisas”, que em si já são um problema desde Kant, a própria noção de “verdade” sempre foi ao mesmo tempo um dos pilares e uma das questões maiores no pensamento ocidental, a tal ponto que Montaigne (1533-1692) afirmou em seus Ensaios: “Comme de vrai nous n´avons autre mire de la verité et de la raison, que l´exemple et idée des opinions et usances du pays où nous sommes (Como verdade, não temos outro foco da verdade e da razão, que o exemplo e a ideia de opiniões e costumes do país onde estamos) (Montaigne, 2005, p. 101)”. Mas quais são as “coisas” que têm um lugar onde imperam as verdades?
a amora deitada fora
a maçã deixada pra outrora
os guardanapos de linho usados uma vez ao ano
os pratos de porcelana presos às prateleiras
degustando doçuras na entressafra das cerimônias
as flanelas longe das panelas
as esquinas porque passamos uma única vez
os ímãs na geladeira, resquícios do que se quer eterno
os esconderijos d’alma
silenciados pelo pudor e glória
Se sabemos que, para Kant, haveria uma coisa em si (ding an sich) cuja existência não dependeria da experiência humana para apreendê-la, ou seja, uma coisa em si independente de sua percepção (ou não) por um ser humano, a coisa de que fala Wolkoff é diferente, pois é resultado de um processamento pela autora: trata-se de um objeto derivado de sua experiência subjetiva transformada em linguagem, marcado pelo lugar de que fala a poeta, e configurado nos parâmetros da poesia. Nestes parâmetros, há as distâncias “verdadeiras e as longínquas”:
Pelas janelas de tantos poemas
traçamos as distâncias verdadeiras e as longínquas.
Nas primeiras voam as aves migratórias.
Já nas segundas, sobrevoa o meu eu do teu
numa tarde de inverno & neve
De fato, importa mais ao eu lírico o processamento pela linguagem poética do que uma possível “objetividade verdadeira”, que estaria ligada à noção de adequatio rei ad intellectum, que pregava uma correspondência entre aquilo que se fala e aquilo de que se fala. A comprovação cabal de que o interesse da voz poética se centra nos elementos constitutivos dos poemas são as 56 incidências de “palavra”, ao longo do livro: seguindo a linha de Drummond, Wolkoff ressalta que poesia se faz com palavras.
Como o título diz que o lugar pertence ao cerne de todas as coisas, então talvez seja mais adequado especificar que, no caso deste livro, ele é o ponto de partida do qual o eu lírico vai fazer suas escolhas, diante dos elementos literários e culturais que circulam naquele lugar específico, e dos sentidos que serão dados por ela dados a esses elementos.
Se, ao longo do século XIX, no Brasil, adotou-se mesmo uma certa “fórmula” para marcar a propriedade do lugar de que se falava, através da menção explícita a elementos vistos como típicos do território (que incluía, por exemplo, a descrição de flora, fauna, lugares e habitantes de regiões com costumes e modos de ser “próprios” dentro do espaço nacional), fórmula que de algum modo encontrou sua síntese na expressão “cor local”, no caso de O Lugar de Todas as Coisas o mais importante não é a “cor local”, mas talvez o que poderíamos chamar de “cor pessoal”, resultado de um processamento poético da tradição anterior para constituir uma obra singular e única.
Dr. José Luís Jobim
Professor Titular da Universidade Federal Fluminense